No enigmático
texto de apresentação deste álbum (um dos três que lançou no ano passado), diz
Sei Miguel que não se considera “um verdadeiro compositor”. Devo, antes de
mais, confessar a minha perplexidade perante tal declaração. Existem, é certo,
diferentes entendimentos de “compositor” ou “composição” e, como tal, longe de
mim ousar contestá-la. Em todo o caso, o referido texto fornece-nos algumas
pistas: “no meu jazz, compor implica e significa [...] o mero estudo da forma;
uma forma abstrata, coletiva, que está lá, podemos dizer, independentemente da
interpretação dos músicos; são eles que estão de fato no coração do jazz, são
eles o coração do jazz. As minhas peças, mais ou menos ambiciosas, estão no
limiar, no limite: entre o que julgo saber e o que julgo ignorar.” Perante
isto, um “verdadeiro” compositor seria, presumo (não sem algumas hesitações),
alguém que não se limitaria a conceber essa “forma abstrata”, mas trataria de
determinar (pelo menos) o grosso do conteúdo concreto, digamos, de cada peça,
colocando-se a si próprio no “coração” da música; os intérpretes estariam
apenas ao seu serviço, enquanto reprodutores desse conteúdo. O que Sei Miguel
me parece estar a dizer é que, não obstante ser ele o responsável pela dita
forma (“o que julgo saber”), são depois os músicos que a interpretam que lhe
conferem conteúdo (“o que julgo ignorar”). A forma seria, então, uma
determinada ideia, mais ou menos específica, que estabeleceria o carácter geral
de cada peça; o conteúdo, a sua atualização.
A minha concepção
de composição é, contudo, bem mais geral: a composição (musical), segundo a
entendo, é tão somente a arte de combinar elementos (sonoros) de forma
criativa. Nesse sentido, Sei Miguel não é apenas um verdadeiro compositor, mas
um compositor de gênio. Sei Miguel é fundamentalmente - nada mais do que,
arrisco-me a dizer - um compositor. Desde a elaboração dessas formas abstratas
à escolha dos músicos (e instrumentos) que as atualizam, passando pelos sons
emitidos pelo seu trompete de bolso em tempo real, tudo, na sua música, na sua
arte, é composição. Deste modo, podemos fazer sentido daquilo que se disse no
parágrafo anterior chamando a atenção para o fato de que Sei Miguel atribui aos
seus próprios intérpretes um papel composicional de relevo, ainda que
subordinado às tais formas - ou ideias.
É também
curioso que Sei Miguel chame “jazz” à sua música. Aqui, talvez se passe o
inverso: é possível que a minha concepção de “jazz” seja mais restrita do que a
sua. O jazz, no meu entender, não é um “gênero” musical (até porque não
acredito em tais entidades), nem tampouco um determinado modus operandi, mas
antes um conjunto de vocabulários centrais à história da grande música negra do
século XX e às suas comunidades associadas. Por exemplo, Miles Davis, Sun Ra,
George Lewis ou Wadada Leo Smith, artistas que ouço ecoar algures neste álbum,
não são “músicos de jazz” no sentido corrente, mas compositores que se serviram
decisivamente desses mesmos vocabulários, entre muitos outros recursos. Para
Sei Miguel, tais vocabulários são também decisivos, assim como o é a herança da
chamada escola de Nova Iorque - e muito mais. Se insistirmos em usar categorias
convencionais, diríamos que a sua música tem um pé no(s) jazz(es) e outro na
dita clássica contemporânea (podemos imaginá-lo como uma espécie de figura
sincrética algures entre Miles e Cage), mas julgo mais adequado tomá-lo
simplesmente como o criador de uma música totalmente original, uma síntese de
diversos mundos, que em certa medida reduz aos seus elementos primordiais.
Este álbum é
aquilo a que, na gíria da clássica contemporânea, se chama um retrato. São
quatro peças, interpretadas por diferentes formações, quatro exemplos notáveis
do seu universo sonoro tão particular. Além da presença constante do próprio
Sei Miguel e de Fala Mariam nos seus habituais trompete de bolso e trombone
alto, respetivamente, todas as formações contam com pelo menos um instrumento
de percussão de carácter étnico, remetendo-nos para os quatro cantos do mundo.
As duas peças
iniciais, “O Primeiro Tambor” e “Astérion” são interpretadas por dois
quartetos: na primeira, o sintetizador de André Gonçalves estabelece um drone
que funciona como um pano de fundo sobre o qual Miguel e Mariam intervêm, quais
pintores sobre uma tela, sendo o ambiente completado pelas claves esparsas de
Raphael Soares; na segunda, é a viola de Ernesto Rodrigues que assume essa
função de pano de fundo, mas, por momentos, parece ameaçar emancipar-se dela e,
embora ainda concisa, a percussão (um udu, a cargo de Monsieur Trinité)
agita-se um pouco mais. Já “Sentinela”, aqui numa versão para grupo de sopros e
percussões, é quase uma pequena sinfonia, um excelente exemplo das qualidades
de Sei Miguel enquanto orquestrador, em particular da sua sensibilidade ao
nível de combinações tímbricas. Por fim, “Samba Infinito” tem como fio condutor
o intenso pandeiro de Sami Tarik; Miguel e Mariam surgem inicialmente em
primeiro plano, saindo depois de cena para dar lugar à eletrônica de Rafael
Toral e ao violoncelo de Helena Espvall, que (juntamente com a percussão) tecem
uma atmosfera encantatória, de rara beleza; no final, é retomado o trio
inicial, assim como o andamento mais rápido que caracterizara a primeira parte
da peça. A dada altura, faz-se silêncio, e o álbum termina, mas sentimos que se
poderia estender ad infinitum.
O tambor
original. Ou: o tambor primordial. Poderíamos até dizer: no princípio era o
tambor. “The Original Drum”, este retrato de uma das mais singulares forças
criativas do nosso tempo, remete-nos, de certo modo, para o princípio da
música, quiçá até - nomeadamente através da sonoridade cósmica do sintetizador
na primeira peça - para o princípio dos tempos (a criação enquanto composição);
para esse momento em que alguém, batendo nalgum objeto, terá inventado o
primeiro tambor. Mas será realmente aí que começa a música? Não teria bastado
alguém escutar o seu meio envolvente? (Escolher os sons a que prestamos atenção
é já uma forma de compor.) À semelhança de especular sobre as origens da
linguagem (tarefa desaconselhada pela filósofa Elizabeth Anscombe), especular
sobre as origens da música será, muito possivelmente, um poço sem fundo. (Falo,
claro está, das origens propriamente ditas, não das formas primitivas de
linguagem ou música que certas disciplinas empíricas estudam.) Mas, mesmo que
se trate, em última análise, de uma ilusão, Sei Miguel dá-nos aquilo que nem a
ciência nem a filosofia nos dão: um vislumbre desse putativo momento, do
advento do som produzido por corpos em movimento. Diz-nos o compositor: “o que
é a música enquanto objeto sonoro primordial? muito antes de as culturas a
tentarem subordinar... acredito em tal coisa. É o futuro.” Por que o futuro (e
não um passado longínquo, irrecuperável)? Talvez porque este primitivismo (ou
primordialismo) de Sei Miguel não é nostálgico ou reacionário. Pelo contrário:
é vanguarda, na verdadeira acepção da palavra.
Ainda hoje, a
sua música encontra algum ceticismo, que se deve acima de tudo a certos
preconceitos ensurdecedores: por vezes, deparamo-nos até com alegações de que
Sei Miguel e alguns dos músicos que o acompanham “não sabem tocar”. (Também há
quem diga que Thelonious Monk não sabia tocar...) O preconceito, aqui, é claro:
a ideia de que há apenas uma forma de tocar correta, aquela que se ensina nas
escolas. Não saber tocar não é, todavia, sinônimo de não tocar do modo
convencional: um músico que não sabe tocar (ou que, quando muito, toca mal) é
alguém que não está à altura, enquanto instrumentista, das ideias - suas ou de
outrem - que se propõe atualizar. Ora, em momento algum ouvimos a técnica
instrumental de Sei Miguel (ou de Fala Mariam) falhar: o caso é antes que a sua
técnica idiossincrática tem como único propósito dar atualidade às suas ideias.
Ideias essas - de génio, como disse - que exigem não tanto um virtuosismo
instrumental no sentido convencional, mas antes aquilo a que chamaria um
virtuosismo composicional. Diria de Sei Miguel em grande medida o que disse
Vijay Iyer acerca de Wadada: para ele, cada som é estrutura; cada som que
coloca no tempo é uma escolha composicional. E é isso, aliás, que pede aos seus
intérpretes: saberem colocar o som certo no instante certo do tempo.
Este último
aspeto faz da sua música extraordinariamente inclusiva, podendo reunir grupos
de instrumentistas com características muito diferentes, unidos apenas por essa
sensibilidade composicional comum, que o próprio Sei Miguel neles instiga. A
extraordinária versão de “Sentinela” que aqui ouvimos - reunindo, além dos já
referidos Miguel, Mariam, Soares e Tarik, Rodrigo Amado, Paulo Curado, Bruno
Parrinha e Nuno Torres - é um exemplo particularmente tocante dessa mesma
inclusividade. Diz Sei Miguel que as suas peças são “um meio de realçar o
talento dos músicos com quem tenho o prazer de trabalhar.” Justamente, e, aqui,
fá-lo de modo a realçar não tanto qualidades individuais ou coletivas, mas
qualidades individuais num coletivo, i.e., a atualização da sua música não
advém de uma mera adição de individualidades, nem tampouco as dissolve num todo
em que se tornariam indistintas - não: a contenção requerida pelo equilíbrio do
coletivo tem antes um efeito depurador, como que reduzindo cada voz individual
ao seu âmago, o seu som distintivo, que assim sobressai.
Para alguém
que se pretenda iniciar nos mistérios miguelianos, digamos, este álbum é uma
excelente porta de entrada. Para quem seja já um iniciado, trata-se de um marco
fundamental.
Faixas
1.O Primeiro Tambor (2009) 12:48
2.Asterion (complete score 1999) 12:12
3.Sentinela (second score 1979-92-2018) 15:22
4.Samba Infinito (1997-2018) 13:51
Músicos: Sei Miguel— trompete de bolso; Fala Mariam— trombone alto; André Gonçalves— sintetizador analógico (faixa 1); Raphael Soares— claves (faixas 1 e 3); Ernesto Rodrigues— viola (faixa 2); Monsieur Trinité— udu (faixa 2); Bruno Parrinha— clarinete alto (faixa 3);Nuno Torres— saxofone alto (faixa 3); Paulo Curado— flauta (faixa 3); Rodrigo Amado— saxofone tenor (faixa 3); Sami Tarik— tamborim (faixa 3) e pandeiro (faixa 4); Helena Espvall— violoncelo (faixa 4); Rafael Toral— amplificador modificado (faixa 4).
Fonte: João
Esteves da Silva (jazz.pt)
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