Baterista e compositor, João Lencastre é figura central do
jazz nacional nas últimas duas décadas. O seu trabalho multidimensional tanto o
coloca na área do jazz mais conservador como nos domínios da música improvisada
exploratória, e tudo no ínterim, deixando sempre marca indelével nos projetos e
grupos em que se envolve. O seu mais recente álbum aponta nas duas direções a
que o título alude: por um lado, uma vertente celebratória da música de três
figuras inescapáveis da história do jazz: Thelonious Monk (1917-1982), Herbie
Nichols (1919-1963) e Ornette Coleman (1930-2015); por outro, a liberdade para
interpelar criativamente a riqueza destes legados de forma desempoeirada e sem
grilhetas. “Free Celebration”, acabado de editar pela Robalo, é por isso diferente
dos registos anteriores do baterista, direcionado não a composições suas, mas à
releitura de obras de alguns dos seus compositores de jazz preferidos, a que
junta algumas improvisações coletivas. «Quando pensei em fazer este projeto»,
começa por dizer João Lencastre à jazz.pt, «pensei em dar uma nova vida a estas
composições, respeitando obviamente as versões originais.» O propósito é claro:
«As gravações originais são muito únicas e mágicas, e tentar de alguma forma
copiá-las não faria, na minha opinião, qualquer sentido». A ideia foi
reinterpretar estas músicas com uma «abordagem nova e fresca, sem perder a sua
identidade, tendo cada uma total liberdade para exprimir a sua personalidade
musical.»
Baterista multimodo, João Lencastre é um músico capaz de
surpreender mesmo quem siga a sua atividade de forma mais próxima. Liderando os
seus próprios projetos e formações ou colaborando com músicos de vários
domínios, tem vindo a burilar uma abordagem versátil, o que lhe permite
encaixar-se com naturalidade e consequência em diversos contextos. De geometria
instrumental variável, os Communion são o seu projeto mais emblemático: tanto
pode ser um trio como assumir outras configurações (“Unlimited Dreams”,
notabilíssimo disco de 2021, foi gravado em formato de octeto). Mas Lencastre
tem vindo também a entregar-se a projetos como Parallel Realities, com disco
homônimo de 2019, e “No Gravity”, do ano seguinte. Em 2022 chegaram “Safe In
Your Own World”, o seu primeiro disco em quarteto – acompanhado pelo pianista
Leo Genovese (membro dos Communion desde a sua primeira encarnação), o
contrabaixista norte-americano Drew Gress e o guitarrista Pedro Branco – e
“Studio Adventures”, reunindo improvisações livres inéditas registadas durante
as sessões de gravação de “Unlimited Dreams”. Lencastre é alguém que gosta de
correr riscos, nunca se acantonando a gavetas ou a rótulos estéreis. O seu
trabalho revela o modo hábil como gere referências e contrastes, dinâmicas e
intensidades, sons orgânicos e eletrônicos, mantendo uma assinalável coerência.
Em “Free Celebration” o baterista lisboeta faz-se acompanhar por uma formação
de luxo, verdadeiro sexteto all-star, todos músicos de personalidades
vincadas: Ricardo Toscano no saxofone alto, Pedro Branco na guitarra, João
Bernardo nos teclados e sintetizadores, Nelson Cascais no contrabaixo e João
Pereira na bateria (sim, há duas baterias, já lá vamos). «São grandes
improvisadores, que tocam “o momento” e que surpreendem a cada vez que tocamos.
São também bons amigos que é uma coisa que valorizo bastante», elogia
Lencastre.
A música que escutamos em “Free Celebration” é
particularmente energética – até parece que escutamos uma gravação ao vivo, um
jazz polinizado pelo vigor do rock – com todos os músicos a aportarem as suas
credenciais, decisivos para o cômputo. As peças deste xadrez são judiciosamente
dispostas, servindo o exercício de exploração de «uma vertente do jazz que
ainda não tinha mostrado tanto», sublinha o baterista. O mote para a celebração
é, já o sabemos, a música (ou melhor, as músicas, de tão claramente distintas)
de Monk, Nichols e Coleman. «São três músicos que continuo a ouvir com muita
regularidade, e que, cada um à sua maneira, muito me inspiraram e continuam a
inspirar», refere João Lencastre. Mas há um denominador comum que o fez agregar
estas três figuras: «Uma coisa que todos têm em comum é terem sido sempre fiéis
ao que acreditavam, mesmo tendo sido na altura criticados por muita gente,
nunca tiveram medo de arriscar a criar o seu próprio som, que é algo com a qual
me identifico e tento fazer, e é na minha opinião a única forma da música
evoluir.» Os respetivos mananciais são vastos, tendo o repertório sido
selecionado numa «escolha muito natural.» «Basicamente são alguns dos meus
temas favoritos de cada um dos compositores, e que de certa maneira acabam por
ligar bem entre si.» A ideia de um projeto com duas baterias vinha de trás e
Lencastre sentiu que havia chegado o momento: «O João Pereira é um músico
incrível, que adoro ouvir tocar. Tem um forte conhecimento da tradição, mas
também improvisa livremente em qualquer contexto», diz. Os baterismos de
Lencastre e Pereira são contrastantes e esse eixo é central para a dinâmica da
música: se o primeiro é geralmente mais recatado, o segundo revela-se amiúde mais
explosivo. Mas há outro aspeto que ressalta como decisivo para conferir novas
cores aos temas, a utilização de sintetizadores em vez de piano («pensei logo
no João Bernardo», confessa João Lencastre).
Em “Free Celebration 2” as eletrônicas dão o mote para uma
improvisação coletiva serena e planante, com os saxofones a pairarem sobre uma
massa sonora que paulatinamente adquire formas diversas. “Giggin”, de Ornette
Coleman, tem um ambiente festivo, lançado por uníssonos dos quais emanam
apontamentos solísticos dos vários músicos, em crescendo até ao clímax.
“Skippy”, de Thelonious Monk, mantém o drive vertiginoso, graças à propulsão
injetada pelas baterias, com o piano elétrico e o alto de Toscano a adquirirem
protagonismo. “Congeniality”, outro emblema ornettiano, começa por ser
bem-vindo refrigério, ainda que com as suas constantes mudanças de ritmo.
Toscano brilha de novo (ao) no alto e a guitarra de Branco também se destaca,
incendiando a casa (o grupo de bateristas colabora), até à reexposição final.
“Kathelyn Gray” é uma bela balada, com Toscano dulcíssimo e um Nelson Cascais a
expor toda a sua musicalidade. Em “The Third World”, de Nichols, tudo volta a suingar
em lume alto; Branco sola sobre pulsação acelerada, para o saxofone de Toscano
logo se juntando à conversa, sublinhando ou contrapondo. “Shuffle Boil” assume
contornos mais exploratórios que o saxofone tempera com luz. A leitura de “Toy
Dance” é intrincado tricô entre guitarra, contrabaixo dolente, eletrônicas
espaciais e baterias recatadas, a que a dado momento se junta a destreza altiva
de Toscano. O arranjo colorido e vibrante de “The Gig”, outro original de
Nichols, ganha aqui traços jazz-rock. Toscano adita viço e a peça termina em
festa. “Free Celebration 1”, habitual abertura de concertos, é a outra vinheta
improvisada em conjunto, dominada pelas notas cavadas do contrabaixo, o
saxofone relaxado, a percussão delicada. Na vertiginosa “Forerunner” escutamos
as baterias no olho do furacão, intenso vórtice rítmico, até que saxofone e
guitarra se soltam livremente. O arranjo vívido de “Humph”, com substrato eletrônico,
nutre os frutos de Toscano, encerrando o álbum com os níveis energéticos em
alta.
Inspirados pelo cânone, João Lencastre & Cia., não se
deixam atemorizar e, intrépidos, acrescentam-lhe pontos relevantes, numa
dialética permanente entre a tradição e o que dela fazemos.
Faixas
1.Free
Celebration 2 02:38
2.Giggin'
03:18
3.Skippy
03:40
4.Congeniality
06:32
5.Kathelyn
Gray 04:43
6.The
Third World 02:30
7.Shuffle
Boil 02:50
8.Toy
Dance 05:30
9.The
Gig 05:19
10.Free Celebration 1 02:46
11.Forerunner 05:11
12.Humph 02:25
Músicos: Ricardo Toscano— saxofone alto; Pedro Branco— guitarra; João Bernardo— teclados e sintetizadores; Nelson Cascais— contrabaixo; João Pereira— bateria; João Lencastre— bateria
Fonte: António Branco (jazz.pt)
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