playlist Music

sábado, 8 de fevereiro de 2025

JOÃO LENCASTRE - FREE CELEBRATION (Robalo)

Baterista e compositor, João Lencastre é figura central do jazz nacional nas últimas duas décadas. O seu trabalho multidimensional tanto o coloca na área do jazz mais conservador como nos domínios da música improvisada exploratória, e tudo no ínterim, deixando sempre marca indelével nos projetos e grupos em que se envolve. O seu mais recente álbum aponta nas duas direções a que o título alude: por um lado, uma vertente celebratória da música de três figuras inescapáveis da história do jazz: Thelonious Monk (1917-1982), Herbie Nichols (1919-1963) e Ornette Coleman (1930-2015); por outro, a liberdade para interpelar criativamente a riqueza destes legados de forma desempoeirada e sem grilhetas. “Free Celebration”, acabado de editar pela Robalo, é por isso diferente dos registos anteriores do baterista, direcionado não a composições suas, mas à releitura de obras de alguns dos seus compositores de jazz preferidos, a que junta algumas improvisações coletivas. «Quando pensei em fazer este projeto», começa por dizer João Lencastre à jazz.pt, «pensei em dar uma nova vida a estas composições, respeitando obviamente as versões originais.» O propósito é claro: «As gravações originais são muito únicas e mágicas, e tentar de alguma forma copiá-las não faria, na minha opinião, qualquer sentido». A ideia foi reinterpretar estas músicas com uma «abordagem nova e fresca, sem perder a sua identidade, tendo cada uma total liberdade para exprimir a sua personalidade musical.»

Baterista multimodo, João Lencastre é um músico capaz de surpreender mesmo quem siga a sua atividade de forma mais próxima. Liderando os seus próprios projetos e formações ou colaborando com músicos de vários domínios, tem vindo a burilar uma abordagem versátil, o que lhe permite encaixar-se com naturalidade e consequência em diversos contextos. De geometria instrumental variável, os Communion são o seu projeto mais emblemático: tanto pode ser um trio como assumir outras configurações (“Unlimited Dreams”, notabilíssimo disco de 2021, foi gravado em formato de octeto). Mas Lencastre tem vindo também a entregar-se a projetos como Parallel Realities, com disco homônimo de 2019, e “No Gravity”, do ano seguinte. Em 2022 chegaram “Safe In Your Own World”, o seu primeiro disco em quarteto – acompanhado pelo pianista Leo Genovese (membro dos Communion desde a sua primeira encarnação), o contrabaixista norte-americano Drew Gress e o guitarrista Pedro Branco – e “Studio Adventures”, reunindo improvisações livres inéditas registadas durante as sessões de gravação de “Unlimited Dreams”. Lencastre é alguém que gosta de correr riscos, nunca se acantonando a gavetas ou a rótulos estéreis. O seu trabalho revela o modo hábil como gere referências e contrastes, dinâmicas e intensidades, sons orgânicos e eletrônicos, mantendo uma assinalável coerência. Em “Free Celebration” o baterista lisboeta faz-se acompanhar por uma formação de luxo, verdadeiro sexteto all-star, todos músicos de personalidades vincadas: Ricardo Toscano no saxofone alto, Pedro Branco na guitarra, João Bernardo nos teclados e sintetizadores, Nelson Cascais no contrabaixo e João Pereira na bateria (sim, há duas baterias, já lá vamos). «São grandes improvisadores, que tocam “o momento” e que surpreendem a cada vez que tocamos. São também bons amigos que é uma coisa que valorizo bastante», elogia Lencastre.

A música que escutamos em “Free Celebration” é particularmente energética – até parece que escutamos uma gravação ao vivo, um jazz polinizado pelo vigor do rock – com todos os músicos a aportarem as suas credenciais, decisivos para o cômputo. As peças deste xadrez são judiciosamente dispostas, servindo o exercício de exploração de «uma vertente do jazz que ainda não tinha mostrado tanto», sublinha o baterista. O mote para a celebração é, já o sabemos, a música (ou melhor, as músicas, de tão claramente distintas) de Monk, Nichols e Coleman. «São três músicos que continuo a ouvir com muita regularidade, e que, cada um à sua maneira, muito me inspiraram e continuam a inspirar», refere João Lencastre. Mas há um denominador comum que o fez agregar estas três figuras: «Uma coisa que todos têm em comum é terem sido sempre fiéis ao que acreditavam, mesmo tendo sido na altura criticados por muita gente, nunca tiveram medo de arriscar a criar o seu próprio som, que é algo com a qual me identifico e tento fazer, e é na minha opinião a única forma da música evoluir.» Os respetivos mananciais são vastos, tendo o repertório sido selecionado numa «escolha muito natural.» «Basicamente são alguns dos meus temas favoritos de cada um dos compositores, e que de certa maneira acabam por ligar bem entre si.» A ideia de um projeto com duas baterias vinha de trás e Lencastre sentiu que havia chegado o momento: «O João Pereira é um músico incrível, que adoro ouvir tocar. Tem um forte conhecimento da tradição, mas também improvisa livremente em qualquer contexto», diz. Os baterismos de Lencastre e Pereira são contrastantes e esse eixo é central para a dinâmica da música: se o primeiro é geralmente mais recatado, o segundo revela-se amiúde mais explosivo. Mas há outro aspeto que ressalta como decisivo para conferir novas cores aos temas, a utilização de sintetizadores em vez de piano («pensei logo no João Bernardo», confessa João Lencastre).

Em “Free Celebration 2” as eletrônicas dão o mote para uma improvisação coletiva serena e planante, com os saxofones a pairarem sobre uma massa sonora que paulatinamente adquire formas diversas. “Giggin”, de Ornette Coleman, tem um ambiente festivo, lançado por uníssonos dos quais emanam apontamentos solísticos dos vários músicos, em crescendo até ao clímax. “Skippy”, de Thelonious Monk, mantém o drive vertiginoso, graças à propulsão injetada pelas baterias, com o piano elétrico e o alto de Toscano a adquirirem protagonismo. “Congeniality”, outro emblema ornettiano, começa por ser bem-vindo refrigério, ainda que com as suas constantes mudanças de ritmo. Toscano brilha de novo (ao) no alto e a guitarra de Branco também se destaca, incendiando a casa (o grupo de bateristas colabora), até à reexposição final. “Kathelyn Gray” é uma bela balada, com Toscano dulcíssimo e um Nelson Cascais a expor toda a sua musicalidade. Em “The Third World”, de Nichols, tudo volta a suingar em lume alto; Branco sola sobre pulsação acelerada, para o saxofone de Toscano logo se juntando à conversa, sublinhando ou contrapondo. “Shuffle Boil” assume contornos mais exploratórios que o saxofone tempera com luz. A leitura de “Toy Dance” é intrincado tricô entre guitarra, contrabaixo dolente, eletrônicas espaciais e baterias recatadas, a que a dado momento se junta a destreza altiva de Toscano. O arranjo colorido e vibrante de “The Gig”, outro original de Nichols, ganha aqui traços jazz-rock. Toscano adita viço e a peça termina em festa. “Free Celebration 1”, habitual abertura de concertos, é a outra vinheta improvisada em conjunto, dominada pelas notas cavadas do contrabaixo, o saxofone relaxado, a percussão delicada. Na vertiginosa “Forerunner” escutamos as baterias no olho do furacão, intenso vórtice rítmico, até que saxofone e guitarra se soltam livremente. O arranjo vívido de “Humph”, com substrato eletrônico, nutre os frutos de Toscano, encerrando o álbum com os níveis energéticos em alta.

Inspirados pelo cânone, João Lencastre & Cia., não se deixam atemorizar e, intrépidos, acrescentam-lhe pontos relevantes, numa dialética permanente entre a tradição e o que dela fazemos.

Faixas

1.Free Celebration 2 02:38

2.Giggin' 03:18

3.Skippy 03:40

4.Congeniality 06:32

5.Kathelyn Gray 04:43

6.The Third World 02:30

7.Shuffle Boil 02:50

8.Toy Dance 05:30

9.The Gig 05:19

10.Free Celebration 1 02:46

11.Forerunner 05:11

12.Humph 02:25

Músicos: Ricardo Toscano— saxofone alto; Pedro Branco— guitarra; João Bernardo— teclados e sintetizadores; Nelson Cascais— contrabaixo; João Pereira— bateria; João Lencastre— bateria

Fonte: António Branco (jazz.pt)

 

 

 

Nenhum comentário: