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sábado, 15 de fevereiro de 2025

KIM CASS – LEVS (Pi Recordings)

Baseado na borbulhante cena do Brooklyn, Kim Cass (nascido em 1985) é um contrabaixista, compositor e improvisador na vanguarda das explorações rítmicas. Acaba de lançar o seu registo de estreia na Pi Recordings, “Levs”. Acompanham-no nesta jornada o pianista Matt Mitchell – de quem é colaborador de longa data, escutamo-lo em álbuns como “A Pouting Grimace” (2017) e “Phalanx Ambassadors” (2019) – e o baterista Tyshawn Sorey. Este último não poupou nos encômios, apodando Cass como «um compositor e instrumentista singular: o homem consegue fazer coisas que não parecem possíveis no contrabaixo, exibindo um domínio técnico do instrumento ao nível dos mais célebres executantes virtuosos de qualquer género musical.» Também Mitchell deita luz sobre o universo sônico do contrabaixista: «Possui um domínio temível que resulta tanto de uma imersão abrangente em toda a história do jazz e da música improvisada como de um virtuosismo instrumental meticulosamente desenvolvido que tem de ser ouvido para ser acreditado.» Mas é como compositor que o prefere enaltecer: «Ele alcança uma multiplicidade absolutamente nova e totalmente aperfeiçoada, dentro da qual refrata e ressintetiza os seus inúmeros precedentes musicais preferidos».

Kim Cass é natural de Bar Harbor, uma cidade na ilha de Mount Desert, localizada ao largo da costa do Maine, onde descobriu o baixo elétrico quando tinha 10 anos de idade. Desenvolveu rapidamente um estilo próprio no instrumento, tendo começado a tocar baixo vertical três anos depois, dando início a um processo exploratório de evolução – enquanto instrumentista e compositor – no contexto do jazz mais aventureiro. A passagem frutífera pelo New England Conservatory – onde estudou, entre outros, com George Garzone, Ran Blake, Joe Morris e Joe Maneri – permitiu-lhe alargar horizontes e perceber melhor que caminho pretendia trilhar. Os dados estavam lançados e não mais parou, integrando diversas formações que lhe ofereceram o ensejo de executar música desafiante, como as lideradas por John Zorn, Bill McHenry, Dan Weiss e Noah Preminger – em mais de uma década de colaboração, vertida em álbuns como “Thunda (2021) e “The Dank” (2023). O seu álbum solo, homônimo, para contrabaixo e eletrônicas, editado pela Table and Chairs em 2015, foi desde logo uma mostra do valor das suas composições e do seu som especial enquanto contrabaixista, que expande o perímetro de intervenção do instrumento. Hoje, Cass integra um escol de músicos interessados em criar obras na linha da frente da acuidade rítmica; outros são exemplos como a baterista e compositora Kate Gentile – com quem gravou “Snark Horse” (2021) e “Find Letter X” (2023) – e a vibrafonista Patricia Brennan (“More Touch”, de 2022).

As composições que integram “Levs” são exemplo disso mesmo, verdadeiramente idiossincráticas, não apenas do ponto de vista rítmico (através de complexas estruturas polirrítmicas), mas também no plano da construção harmônica, através da criação de atmosferas por vezes sombrias, outras etéreas e oníricas, sempre misteriosas e com o condão de deixar o ouvinte alerta. Cass toca com uma precisão – desenvolvida em apertada articulação com o piano, como se de uma voz unificada se tratasse – e um vocabulário pessoal, que transcende as limitações técnicas do instrumento. Na bateria, as improvisações estruturadas de Sorey acrescentam uma camada de imprevisibilidade e de energia decisivas para o cômputo, reforçando ou contrastando ideias. A adição sutil da flauta de Laura Cocks, do eufônio de Adam Dotson e da eletrônica de Mitchell ajuda a transportar o ouvinte para outras dimensões. Estas composições colheram inspiração numa seleção das partituras clássicas favoritas de Cass, anotadas à mão, incluindo as de Stockhausen, Schoenberg e Boulez. O seu estudo aprofundado permitiu-lhe estruturar uma forma diferente de olhar para a música, iluminando uma ligação entre a forma escrita e as personalidades musicais dos compositores, integrando múltiplos aspetos do tempo, da temporalidade e balanço. Cass é, ele próprio, um rabiscador, e o desenho é também um aspecto importante da sua expressão artística. Tem o hábito de escrever as suas partituras meticulosamente à mão, prestando a mesma atenção à estética da notação – tomando-as como obras de arte visual por direito próprio – com as imagens e a música a informarem-se, de forma orgânica e natural, uma à outra.

O intrépido contrabaixo de Kim Cass está no centro gravitacional do que acontece, mas revela-se mais socrático do que aristotélico. Os caminhos são sugeridos, não prescritos. A musicalidade da banda é notável, notoriamente fundada na tradição jazzística do trio de piano, mas usando essa referência basilar como rampa de lançamento para partir noutras direções. Escutamos miniaturas, fragmentos que se interligam, compondo um mosaico rico e complexo. A abertura faz-se com “Slag”, onde as notas breves iniciais dão o tiro de partida para uma peça lépida, desde logo reveladora dos apertados níveis de interação no seio da formação. “Fog Face”, momento de início mais ambiental, mas que logo tergiversa para uma maior intensidade, com o piano anguloso e a dupla rítmica em permanente ebulição. “Gs” traz uma atmosfera exdrúxula, com uma camada eletrônica que aporta novos graus de liberdade; o tema-título é nervoso e agitado, com os voos picados do piano de Mitchell acolitados por um espesso húmus rítmico a que se junta a flauta de Cocks. A velocidade pianística marca “Time” e “Rumple”, este com não despiciendo input eletrônico, qual sopro alienígena. Em “Ripley”, chegamos próximo de uma “balada”, com escovas e tudo, mas sempre a desafiar os lugares-comuns da forma. “Jungle” é enigmaticamente serena, marcada pelo eufônio de Dotson e “Body” é tour-de-force para o contrabaixista, que se faz acompanhar por um manto eletrônico. “Tentacle” é mais um exercício de apertada interação, muitos nós numa área pequena, e “Sea Vine” tem as eletrônicas de novo a desempenharem papel central. Com a sua escarpada paisagem sci-fi, “Minor” antecede a solenidade de “Trench”, feitas de um piano amplo, contrabaixo sinuoso, bateria delicada.

Vertiginoso e onírico, “Levs” consagra definitivamente Kim Cass como estratego sonoro. De forma algo paradoxal, quanto mais cerebral é esta música, mais livre ela soa.

Faixas

1.Slag 02:54

2.Fog Face 03:18

3.Gs 02:25

4.Levs 03:50

5.Time 02:05

6.Ripley 03:07

7.Rumple 03:59

8.Jungle 02:49

9.Body 02:00

10.Tentacle 03:27

11.Sea Vine 03:06

12.Minor 02:18

13.Trench 06:08

Músicos: Kim Cass— contrabaixo, sampling ; Matt Mitchell— piano, Prophet-6; Tyshawn Sorey— bateria; Laura Cocks— flautas; Adam Dotson— eufônio

Fonte: António Branco (jazz.pt)

 

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