Baseado na
borbulhante cena do Brooklyn, Kim Cass (nascido em 1985) é um contrabaixista,
compositor e improvisador na vanguarda das explorações rítmicas. Acaba de
lançar o seu registo de estreia na Pi Recordings, “Levs”. Acompanham-no
nesta jornada o pianista Matt Mitchell – de quem é colaborador de longa data, escutamo-lo
em álbuns como “A Pouting Grimace” (2017) e “Phalanx Ambassadors” (2019) – e o
baterista Tyshawn Sorey. Este último não poupou nos encômios, apodando Cass
como «um compositor e instrumentista singular: o homem consegue fazer coisas
que não parecem possíveis no contrabaixo, exibindo um domínio técnico do
instrumento ao nível dos mais célebres executantes virtuosos de qualquer género
musical.» Também Mitchell deita luz sobre o universo sônico do contrabaixista:
«Possui um domínio temível que resulta tanto de uma imersão abrangente em toda
a história do jazz e da música improvisada como de um virtuosismo instrumental
meticulosamente desenvolvido que tem de ser ouvido para ser acreditado.» Mas é
como compositor que o prefere enaltecer: «Ele alcança uma multiplicidade
absolutamente nova e totalmente aperfeiçoada, dentro da qual refrata e
ressintetiza os seus inúmeros precedentes musicais preferidos».
Kim Cass é
natural de Bar Harbor, uma cidade na ilha de Mount Desert, localizada ao largo
da costa do Maine, onde descobriu o baixo elétrico quando tinha 10 anos de
idade. Desenvolveu rapidamente um estilo próprio no instrumento, tendo começado
a tocar baixo vertical três anos depois, dando início a um processo
exploratório de evolução – enquanto instrumentista e compositor – no contexto
do jazz mais aventureiro. A passagem frutífera pelo New England Conservatory –
onde estudou, entre outros, com George Garzone, Ran Blake, Joe Morris e Joe
Maneri – permitiu-lhe alargar horizontes e perceber melhor que caminho
pretendia trilhar. Os dados estavam lançados e não mais parou, integrando
diversas formações que lhe ofereceram o ensejo de executar música desafiante,
como as lideradas por John Zorn, Bill McHenry, Dan Weiss e Noah Preminger – em
mais de uma década de colaboração, vertida em álbuns como “Thunda (2021) e “The
Dank” (2023). O seu álbum solo, homônimo, para contrabaixo e eletrônicas,
editado pela Table and Chairs em 2015, foi desde logo uma mostra do valor das
suas composições e do seu som especial enquanto contrabaixista, que expande o
perímetro de intervenção do instrumento. Hoje, Cass integra um escol de músicos
interessados em criar obras na linha da frente da acuidade rítmica; outros são
exemplos como a baterista e compositora Kate Gentile – com quem gravou “Snark
Horse” (2021) e “Find Letter X” (2023) – e a vibrafonista Patricia Brennan
(“More Touch”, de 2022).
As
composições que integram “Levs” são exemplo disso mesmo, verdadeiramente
idiossincráticas, não apenas do ponto de vista rítmico (através de complexas
estruturas polirrítmicas), mas também no plano da construção harmônica, através
da criação de atmosferas por vezes sombrias, outras etéreas e oníricas, sempre
misteriosas e com o condão de deixar o ouvinte alerta. Cass toca com uma
precisão – desenvolvida em apertada articulação com o piano, como se de uma voz
unificada se tratasse – e um vocabulário pessoal, que transcende as limitações
técnicas do instrumento. Na bateria, as improvisações estruturadas de Sorey
acrescentam uma camada de imprevisibilidade e de energia decisivas para o
cômputo, reforçando ou contrastando ideias. A adição sutil da flauta de Laura
Cocks, do eufônio de Adam Dotson e da eletrônica de Mitchell ajuda a
transportar o ouvinte para outras dimensões. Estas composições colheram inspiração
numa seleção das partituras clássicas favoritas de Cass, anotadas à mão,
incluindo as de Stockhausen, Schoenberg e Boulez. O seu estudo aprofundado
permitiu-lhe estruturar uma forma diferente de olhar para a música, iluminando
uma ligação entre a forma escrita e as personalidades musicais dos
compositores, integrando múltiplos aspetos do tempo, da temporalidade e balanço.
Cass é, ele próprio, um rabiscador, e o desenho é também um aspecto importante
da sua expressão artística. Tem o hábito de escrever as suas partituras
meticulosamente à mão, prestando a mesma atenção à estética da notação –
tomando-as como obras de arte visual por direito próprio – com as imagens e a
música a informarem-se, de forma orgânica e natural, uma à outra.
O intrépido
contrabaixo de Kim Cass está no centro gravitacional do que acontece, mas
revela-se mais socrático do que aristotélico. Os caminhos são sugeridos, não
prescritos. A musicalidade da banda é notável, notoriamente fundada na tradição
jazzística do trio de piano, mas usando essa referência basilar como rampa de
lançamento para partir noutras direções. Escutamos miniaturas, fragmentos que
se interligam, compondo um mosaico rico e complexo. A abertura faz-se com
“Slag”, onde as notas breves iniciais dão o tiro de partida para uma peça
lépida, desde logo reveladora dos apertados níveis de interação no seio da
formação. “Fog Face”, momento de início mais ambiental, mas que logo tergiversa
para uma maior intensidade, com o piano anguloso e a dupla rítmica em
permanente ebulição. “Gs” traz uma atmosfera exdrúxula, com uma camada eletrônica
que aporta novos graus de liberdade; o tema-título é nervoso e agitado, com os
voos picados do piano de Mitchell acolitados por um espesso húmus rítmico a que
se junta a flauta de Cocks. A velocidade pianística marca “Time” e “Rumple”,
este com não despiciendo input eletrônico, qual sopro alienígena. Em “Ripley”,
chegamos próximo de uma “balada”, com escovas e tudo, mas sempre a desafiar os
lugares-comuns da forma. “Jungle” é enigmaticamente serena, marcada pelo eufônio
de Dotson e “Body” é tour-de-force para o contrabaixista, que se faz acompanhar
por um manto eletrônico. “Tentacle” é mais um exercício de apertada interação,
muitos nós numa área pequena, e “Sea Vine” tem as eletrônicas de novo a
desempenharem papel central. Com a sua escarpada paisagem sci-fi, “Minor”
antecede a solenidade de “Trench”, feitas de um piano amplo, contrabaixo
sinuoso, bateria delicada.
Vertiginoso e
onírico, “Levs” consagra definitivamente Kim Cass como estratego sonoro. De
forma algo paradoxal, quanto mais cerebral é esta música, mais livre ela soa.
Faixas
1.Slag
02:54
2.Fog
Face 03:18
3.Gs
02:25
4.Levs
03:50
5.Time
02:05
6.Ripley
03:07
7.Rumple
03:59
8.Jungle
02:49
9.Body
02:00
10.Tentacle
03:27
11.Sea
Vine 03:06
12.Minor
02:18
13.Trench
06:08
Músicos: Kim Cass— contrabaixo, sampling ; Matt Mitchell— piano, Prophet-6; Tyshawn Sorey— bateria; Laura Cocks— flautas; Adam Dotson— eufônio
Fonte: António
Branco (jazz.pt)
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