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sábado, 8 de março de 2025

ANDRÉ FERNANDES CENTAURI – HADES (Timbuktu)

Nome fundamental do jazz português do século XXI, André Fernandes (nascido em 1976) continua a acrescentar pontos ao seu notável percurso. Como guitarrista tem desenvolvido uma linguagem própria como compositor, uma voz única e individual, e como produtor e engenheiro um conjunto de tarefas de criação musical que contribuem, diz Ohad Talmor certeiramente nas notas para o disco do mais recente opus do músico português, «para manter o lugar da cena jazzística lisboeta na vanguarda da produção musical na Europa». “Hades”, acabado de lançar pela Timbuktu, é o terceiro tomo discográfico do seu projeto Centauri, depois de “Draco” (2018) e “Dianho” (2020, vencedor do Prêmio Play 2021). Tal como estes, o novo álbum é um registo conceitual. “Draco” estava ligado ao interesse de Fernandes pelo lado misterioso da astronomia, para si inspirador; em “Dianho” o guitarrista virou-se para a temática do bestiário tradicional português. Mas o que distingue o novo álbum dos anteriores é a concepção e a abordagem, que, não deixando de soar a Centauri – fruto da personalidade do grupo e dos músicos que o integram –, transporta para outro plano a música que fazem em conjunto.

Se os dois álbuns passados foram escritos de forma convencional, com a música a ser burilada por Fernandes e depois trazida ao grupo para a tocar e gravar, o modus operandi foi diferente desta vez. «Em “Hades” grande parte da música estava ainda aberta, não totalmente escrita, e foi um disco que se concretizou em estúdio, com o input de todos, e com soluções encontradas através da experimentação», explica André Fernandes à jazz.pt. Apesar disso, muita da música continuou a ser engendrada num processo solitário, antes da gravação, com muitos teclados, algumas guitarras, tendo o resto sido construído sobre essas bases. «Em “Hades” decidi manter o uso de uma temática subjacente ao álbum, e usei o rico universo da mitologia grega, que é algo que me fascina pela diversidade de personagens e eventos que contém, mas também pelo fato de ser algo que ainda hoje se manifesta na cultura popular e é relacionado com a vida real, com a relação da humanidade dentro de si mesma, e em relação à dinâmica humano/divino, real/imaginário», refere Fernandes. «A dicotomia beleza/horror e bom/mau é algo que nos torna humanos, o amor, a vingança, vida/morte, coragem/medo e toda uma enorme panóplia de sentimentos estão todas presentes na mitologia grega, e isso é fascinante», acrescenta o guitarrista. «Recuperei este interesse específico ao passar algumas destas histórias às minhas filhas, e durante esse processo escrevi este disco.»

André Fernandes faz-se acompanhar por alguns dos mais importantes músicos nacionais: João Mortágua no saxofone alto e harmônica, José Pedro Coelho nos saxofones tenor e barítono e na flauta, Francisco Brito no contrabaixo e baixo elétrico e João Pereira na bateria e pontualmente ao piano, a que se juntam, como convidados, a cantora Sara Afonso e o baterista Diogo Alexandre. Será a música escrita especificamente a pensar neles? «Sim e não», diz André Fernandes. «Sim, porque sei que são eles que vão tocar a música e conheço-os muito bem, e sei o que conseguem fazer e as suas personalidades. Por outro lado, deixo muita coisa em aberto na música e não tento saber que notas, que expressão, que direção vai ser usada por eles quando forem expostos às ideias que lhes apresento.» Essa camada de incerteza estimulante é essencial no processo criativo: «Dessa forma, mantenho a música viva, para eles e para mim. Odeio saber tudo sobre a música, incluindo a minha.» A música que escutamos em “Hades” é estimulantemente diversa, para ela convergindo muitas das influências do guitarrista, elementos de universos sonoros distintas, aqui postos ao serviço da “descrição” de cada personagem. «Cresci com muita diversidade musical à volta», salienta André Fernandes. «Nunca me senti ligado a nenhum gênero musical mais do que a outro, apesar de em determinadas fases o ter feito, particularmente quando me formei como músico de jazz.» Mas o seu cardápio referencial faz-se, desde sempre, de muita música diferente: rock, punk, eletrônica, orquestral e mais. Esses elementos sempre estiveram presentes nos seus discos, embora nem sempre da mesma forma ou com a mesma intensidade. Fernandes é assertivo: «Não gosto de etiquetas, não gosto de clubes nem de fronteiras na música, acho isso extremamente limitador e um desperdício de oportunidade de nos relacionarmos com o som», sublinha. «Escrevo aquilo que imagino, e procuro que seja estimulante para mim, na esperança de que o seja para mais alguém.»

“Olympus”, redutos dos deuses, é preâmbulo ao mesmo tempo suave e intenso, muita programação, com sintetizadores, flauta e percussão, tapete sonoro meditativo e misterioso. Para ouvir de olhos fechados. Em “Medusa”, criatura terrível e triste, tem base de teclados e solo de guitarra improvisados, bateria a imprimir pulsação instável. “Chronos” – que comeu um filho para garantir a sua sobrevivência baseado numa profecia –, é mais abrasiva, com acordes arrastados de uma guitarra à beira do metal, com a frente de sopros, em uníssono, a aditar espessura, e as eletrônicas a envolver tudo. “Andromeda”, o único tema escrito de princípio ao fim de forma mais convencional, foi gravada ao vivo em apenas um take, traz um arranjo delicado e detalhado, com a guitarra límpida de Fernandes, sopros tranquilos e a percussão em registro quase tribal. Na curta “Prometheus” brilha o saxofone alto de João Mortágua, processado em pós-produção (quase escutamos o crepitar). A peça-título traz um bem-vindo viço punk – na linha de uns Fear –, obsessivo e enérgico, voltímetros no vermelho, que a flauta ousa interpelar. Das trevas para a luz, num registro diametralmente oposto, surge a beleza diáfana de “Persephone”, dividida em três secções, com Fernandes nas guitarras acústicas («propositadamente imperfeitas para criar a sensação de fragilidade») e a voz suave de Sara Afonso. “Minotaur” chega envolto numa nuvem de eletricidade escura, sobre um drone de teclados, com os sopros em regime exploratório, ritmo inquieto. “Pan” é introduzido pelas notas improvisadas e delicadas do piano (tocado por João Pereira); a bateria de Diogo Alexandre prenuncia a disrupção eletrônica proposta por Fernandes, até ao regresso breve do piano. “Titans” é uma espécie de dança final que anuncia o imprevisível, aludindo ao espírito bélico dos gigantes, com solo de José Pedro Coelho, manipulado por Fernandes. Hades, rei do submundo, raptor de Perséfone, irmão divino remetido aos confins do mundo, é mote para um dos grandes discos do ano, impróprio para puristas, altamente recomendado para os demais. André Fernandes continua na frente, a prosseguir a sua visão. Excelente.

Faixas

1.Olympus 03:30

2.Medusa 04:24

3.Chronos 04:39

4.Andromeda 05:33

5.Prometheus 01:55

6.Hades 02:31

7.Persephone 04:52

8.Minotaur 03:37

9.Pan 03:32

10.Titans 01:17

 Músicos: André Fernandes— guitarra, teclados, voz; José Pedro Coelho— saxofones tenor e barítono, flauta; João Mortágua— saxofone alto, harmônica; Francisco Brito— contrabaixo, baixo elétrico; João Pereira— bateria, piano; Diogo Alexandre— bateria em "Pan"; Sara Afonso— voz em “Persephone”.

Para conhecer um pouco deste trabalho, assistam ao vídeo abaixo:

https://www.youtube.com/watch?v=i5i5ZMgArHw

Fonte: António Branco (jazz.pt)

 

 

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