Nome
fundamental do jazz português do século XXI, André Fernandes (nascido em 1976)
continua a acrescentar pontos ao seu notável percurso. Como guitarrista tem
desenvolvido uma linguagem própria como compositor, uma voz única e individual,
e como produtor e engenheiro um conjunto de tarefas de criação musical que
contribuem, diz Ohad Talmor certeiramente nas notas para o disco do mais
recente opus do músico português, «para manter o lugar da cena jazzística
lisboeta na vanguarda da produção musical na Europa». “Hades”, acabado de
lançar pela Timbuktu, é o terceiro tomo discográfico do seu projeto Centauri,
depois de “Draco” (2018) e “Dianho” (2020, vencedor do Prêmio Play 2021). Tal
como estes, o novo álbum é um registo conceitual. “Draco” estava ligado ao
interesse de Fernandes pelo lado misterioso da astronomia, para si inspirador;
em “Dianho” o guitarrista virou-se para a temática do bestiário tradicional
português. Mas o que distingue o novo álbum dos anteriores é a concepção e a
abordagem, que, não deixando de soar a Centauri – fruto da personalidade do
grupo e dos músicos que o integram –, transporta para outro plano a música que
fazem em conjunto.
Se os dois
álbuns passados foram escritos de forma convencional, com a música a ser
burilada por Fernandes e depois trazida ao grupo para a tocar e gravar, o modus
operandi foi diferente desta vez. «Em “Hades” grande parte da música estava
ainda aberta, não totalmente escrita, e foi um disco que se concretizou em
estúdio, com o input de todos, e com soluções encontradas através da
experimentação», explica André Fernandes à jazz.pt. Apesar disso, muita da
música continuou a ser engendrada num processo solitário, antes da gravação,
com muitos teclados, algumas guitarras, tendo o resto sido construído sobre
essas bases. «Em “Hades” decidi manter o uso de uma temática subjacente ao
álbum, e usei o rico universo da mitologia grega, que é algo que me fascina
pela diversidade de personagens e eventos que contém, mas também pelo fato de
ser algo que ainda hoje se manifesta na cultura popular e é relacionado com a
vida real, com a relação da humanidade dentro de si mesma, e em relação à
dinâmica humano/divino, real/imaginário», refere Fernandes. «A dicotomia
beleza/horror e bom/mau é algo que nos torna humanos, o amor, a vingança,
vida/morte, coragem/medo e toda uma enorme panóplia de sentimentos estão todas
presentes na mitologia grega, e isso é fascinante», acrescenta o guitarrista.
«Recuperei este interesse específico ao passar algumas destas histórias às
minhas filhas, e durante esse processo escrevi este disco.»
André
Fernandes faz-se acompanhar por alguns dos mais importantes músicos nacionais:
João Mortágua no saxofone alto e harmônica, José Pedro Coelho nos saxofones
tenor e barítono e na flauta, Francisco Brito no contrabaixo e baixo elétrico e
João Pereira na bateria e pontualmente ao piano, a que se juntam, como
convidados, a cantora Sara Afonso e o baterista Diogo Alexandre. Será a música
escrita especificamente a pensar neles? «Sim e não», diz André Fernandes. «Sim,
porque sei que são eles que vão tocar a música e conheço-os muito bem, e sei o
que conseguem fazer e as suas personalidades. Por outro lado, deixo muita coisa
em aberto na música e não tento saber que notas, que expressão, que direção vai
ser usada por eles quando forem expostos às ideias que lhes apresento.» Essa
camada de incerteza estimulante é essencial no processo criativo: «Dessa forma,
mantenho a música viva, para eles e para mim. Odeio saber tudo sobre a música,
incluindo a minha.» A música que escutamos em “Hades” é estimulantemente
diversa, para ela convergindo muitas das influências do guitarrista, elementos
de universos sonoros distintas, aqui postos ao serviço da “descrição” de cada
personagem. «Cresci com muita diversidade musical à volta», salienta André
Fernandes. «Nunca me senti ligado a nenhum gênero musical mais do que a outro,
apesar de em determinadas fases o ter feito, particularmente quando me formei
como músico de jazz.» Mas o seu cardápio referencial faz-se, desde sempre, de
muita música diferente: rock, punk, eletrônica, orquestral e mais. Esses
elementos sempre estiveram presentes nos seus discos, embora nem sempre da
mesma forma ou com a mesma intensidade. Fernandes é assertivo: «Não gosto de
etiquetas, não gosto de clubes nem de fronteiras na música, acho isso
extremamente limitador e um desperdício de oportunidade de nos relacionarmos
com o som», sublinha. «Escrevo aquilo que imagino, e procuro que seja
estimulante para mim, na esperança de que o seja para mais alguém.»
“Olympus”,
redutos dos deuses, é preâmbulo ao mesmo tempo suave e intenso, muita programação,
com sintetizadores, flauta e percussão, tapete sonoro meditativo e misterioso.
Para ouvir de olhos fechados. Em “Medusa”, criatura terrível e triste, tem base
de teclados e solo de guitarra improvisados, bateria a imprimir pulsação
instável. “Chronos” – que comeu um filho para garantir a sua sobrevivência
baseado numa profecia –, é mais abrasiva, com acordes arrastados de uma
guitarra à beira do metal, com a frente de sopros, em uníssono, a aditar
espessura, e as eletrônicas a envolver tudo. “Andromeda”, o único tema escrito
de princípio ao fim de forma mais convencional, foi gravada ao vivo em apenas
um take, traz um arranjo delicado e detalhado, com a guitarra límpida de
Fernandes, sopros tranquilos e a percussão em registro quase tribal. Na curta
“Prometheus” brilha o saxofone alto de João Mortágua, processado em
pós-produção (quase escutamos o crepitar). A peça-título traz um bem-vindo viço
punk – na linha de uns Fear –, obsessivo e enérgico, voltímetros no vermelho,
que a flauta ousa interpelar. Das trevas para a luz, num registro
diametralmente oposto, surge a beleza diáfana de “Persephone”, dividida em três
secções, com Fernandes nas guitarras acústicas («propositadamente imperfeitas
para criar a sensação de fragilidade») e a voz suave de Sara Afonso. “Minotaur”
chega envolto numa nuvem de eletricidade escura, sobre um drone de teclados,
com os sopros em regime exploratório, ritmo inquieto. “Pan” é introduzido pelas
notas improvisadas e delicadas do piano (tocado por João Pereira); a bateria de
Diogo Alexandre prenuncia a disrupção eletrônica proposta por Fernandes, até ao
regresso breve do piano. “Titans” é uma espécie de dança final que anuncia o
imprevisível, aludindo ao espírito bélico dos gigantes, com solo de José Pedro
Coelho, manipulado por Fernandes. Hades, rei do submundo, raptor de Perséfone,
irmão divino remetido aos confins do mundo, é mote para um dos grandes discos
do ano, impróprio para puristas, altamente recomendado para os demais. André
Fernandes continua na frente, a prosseguir a sua visão. Excelente.
Faixas
1.Olympus 03:30
2.Medusa 04:24
3.Chronos 04:39
4.Andromeda 05:33
5.Prometheus 01:55
6.Hades 02:31
7.Persephone 04:52
8.Minotaur 03:37
9.Pan 03:32
10.Titans 01:17
Para conhecer
um pouco deste trabalho, assistam ao vídeo abaixo:
https://www.youtube.com/watch?v=i5i5ZMgArHw
Fonte:
António Branco (jazz.pt)
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