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sábado, 15 de março de 2025

JOHN O’GALLAGHER – BEAST (Whirlwind)

Será redundante aludir aos mais do que reconhecidos predicados de John O’Gallagher (nascido em 1964) no panorama global do jazz, enquanto saxofonista e compositor. Ao longo de uma vasta e desbravadora carreira, tem vindo a trabalhar na expansão das fronteiras do jazz e em novas abordagens para a improvisação neste contexto. O seu som inovador, profundamente ancorado na tradição do gênero, melódico, mas nunca previsível, em muito transcende o perímetro da convencionalidade. Nascido em Anaheim, Califórnia, estudou com figuras como Jerry Bergonzi e George Garzone, tendo sido parte integrante da vulcânica cena nova-iorquina durante 25 anos, tanto à frente dos seus próprios projetos como na condição de requisitado acompanhante. Mudou-se para Lisboa em 2021, tendo logo estabelecido fortes laços com a comunidade musical local. A sua lista de colaborações é um “quem é quem” do jazz mais aventureiro: Joe Henderson, Maria Schneider, Kenny Wheeler, Paul Dunmall, Billy Hart, Drew Gress, Tyshawn Sorey, Tony Malaby, Ben Street, Kris Davis, Jeff Williams, Tom Rainey, Chris Cheek, Gerald Cleaver, Thomas Morgan, Rudresh Manhathappa, Peter Evans, Rudy Royston, Ben Monder e Michael Formanek (outro novo residente da capital portuguesa), entre uma infinidade de outros. Depois de uma fase em que se remeteu sobretudo ao mundo acadêmico, designadamente na Universidade de Birmingham, Reino Unido, regressa aos discos e em grande forma.

Em “Beast”, com selo da Whirlwind – após “Live In Brooklyn”, de 2016, e “The Anton Webern Project”, de 2013 –, escutamo-lo a tocar ao vivo com um novo grupo multigeracional de músicos da fértil cena de improvisação portuguesa e europeia. O pianista é o alemão Samuel Gapp e a secção rítmica é assegurada por Zé Almeida no contrabaixo e pelo baterista João Lencastre. Esta gravação é a primeira em que o saxofonista norte-americano se posiciona como líder com a formação clássica de quarteto de piano. «Acho que já era altura, eu adoro piano», confessa o músico em notas de apresentação do álbum. «Fiz uma sessão com o Zé quando me mudei para cá e ele tinha um som incrível. Depois, pouco tempo depois, o saxofonista tenor Noah Preminger apresentou-me ao João Lencastre, que por acaso mora no meu bairro. E o João apresentou-me ao Samuel, que acabou de terminar aqui um mestrado em composição clássica. Quando tocamos juntos pela primeira vez, a banda foi muito boa desde o início.»

O’Gallagher dá mais um passo nesse contínuo e insondável processo de exploração das possibilidades que se abrem com um novo conjunto de colaboradores num novo país. O músico norte-americano admite-o sem rodeios: «Uma das razões para me mudar para Portugal foi voltar à minha vida de músico profissional, depois de ter passado os últimos anos no mundo acadêmico. Acredito que é preciso sentir o timing das coisas, sentir o fluxo do que parece certo.» Registrado ao vivo na Sociedade Musical União Paredense (SMUP), no início de novembro de 2022, o álbum apresenta quatro peças improvisadas extensas, duas das quais baseadas em ideias compostas pelo saxofonista como inspiração para explorar território desconhecido, manipulando timbre e densidade, bem como intensidade e ritmo. «As minhas composições são usadas como estruturas, com a ressalva de que só devem ser usadas para dar coesão quando sentimos a necessidade. Caso contrário, está tudo em aberto», explica O’Gallagher. A música esbate intuitivamente as fronteiras entre composição e improvisação e entre liberdade e estrutura. «O que mais gosto em tocar em grupos como este é quando acontece algo inesperado e o público sente e reage a esses momentos. Quanto mais conseguirmos criar esses momentos especiais e alimentá-los, melhor. É a música contada de uma forma diferente», sublinha o saxofonista norte-americano.

Ao longo dos seus 20 minutos de duração, “Permeable” é uma mostra da coleção de variações de texturas, dinâmicas e intensidades. Introduzida pelo dramatismo do contrabaixo, a que se vêm juntar o saxofone altivo de O’Gallagher, o piano e uma dupla rítmica em permanente ebulição. É um Samuel Gapp em estado de graça quem nos oferece um primeiro solo notável, prenhe de angulosidades, que antecede um outro no qual o saxofonista solta as amarras e tergiversa livremente. A atmosfera da peça altera-se então numa secção de contornos de certa forma mais camerísticos, com saxofone a sussurrar-nos ao ouvido, o contrabaixo a aditar dramatismo, a bateria hiperdetalhada, as notas esparsas do piano. A música adquire então uma densidade crescente até se confundir com o silêncio. “Quixotica” é uma composição simples, que se repete com variações dentro de parâmetros tetracordes pré-definidos. Começa tranquila, com o saxofone a lançar pistas que o piano desenvolve demoradamente, com Almeida e Lencastre a ferverem em lume brando. O saxofone reentra em tom lamentoso que progressivamente vai adquirindo uma fogosidade que se atenua no estertor da peça.

“Practically Speaking” começa por ser uma lenta ruminação em trio, serena e detalhada, com a dupla rítmica a exibir os seus níveis de interação no domínio do telepático. O saxofone junta-se na sua elegância sinuosa. («O João e o Zé formam uma equipa fantástica. Partilham os mesmos instintos sobre como enquadrar as coisas, e quando algo novo precisa de ser gerado ou contrastado. A sua forma de tocar dá vida à dinâmica e à direção da música e permite que um capítulo musical termine e outro comece.») A encerrar a jornada, “Phishing for Paramecium” deve o título a certa experiência de um professor do Massachusetts Institute of Technology (MIT). «É o que tentamos fazer na música – imaginar o inimaginável», diz o saxofonista. «Neste tipo de situação aberta, em que há muito pouco a definir, o sucesso da música depende da química dos músicos e, com estes músicos, a química estava imediatamente presente - sente-se logo. É o intangível que todos procuramos», acrescenta. A peça prolonga a atmosfera contemplativa, aqui de contornos mais camerísticos, esdrúxulos, que de alguma forma se vão densificando, sempre com o saxofone a guiar, o piano a desafiá-lo harmonicamente e a dupla rítmica a aditar elementos decisivos para o cômputo. Tudo volta a aquietar-se, adquirindo uma aura espiritual. Exponenciando as virtudes da improvisação, “Beast” é um álbum que reclama o nosso maior foco. Em audições sucessivas, revela-se em todas as suas dimensões, num processo altamente recompensador.

Faixas

1.Permeable 21:05

2.Quixotica 10:05

3.Practically Speaking 06:26

4.Fishing for Paramecium 09:23

Músicos: John O’Gallagher— saxofone alto; Samuel Gapp— piano; Zé Almeida— contrabaixo; João Lencastre— bateria.

Fonte: António Branco (jazz.pt)

 

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