Será redundante aludir aos mais do que reconhecidos
predicados de John O’Gallagher (nascido em 1964) no panorama global do jazz,
enquanto saxofonista e compositor. Ao longo de uma vasta e desbravadora
carreira, tem vindo a trabalhar na expansão das fronteiras do jazz e em novas
abordagens para a improvisação neste contexto. O seu som inovador, profundamente
ancorado na tradição do gênero, melódico, mas nunca previsível, em muito
transcende o perímetro da convencionalidade. Nascido em Anaheim, Califórnia,
estudou com figuras como Jerry Bergonzi e George Garzone, tendo sido parte
integrante da vulcânica cena nova-iorquina durante 25 anos, tanto à frente dos
seus próprios projetos como na condição de requisitado acompanhante. Mudou-se
para Lisboa em 2021, tendo logo estabelecido fortes laços com a comunidade
musical local. A sua lista de colaborações é um “quem é quem” do jazz mais
aventureiro: Joe Henderson, Maria Schneider, Kenny Wheeler, Paul Dunmall, Billy
Hart, Drew Gress, Tyshawn Sorey, Tony Malaby, Ben Street, Kris Davis, Jeff
Williams, Tom Rainey, Chris Cheek, Gerald Cleaver, Thomas Morgan, Rudresh Manhathappa,
Peter Evans, Rudy Royston, Ben Monder e Michael Formanek (outro novo residente
da capital portuguesa), entre uma infinidade de outros. Depois de uma fase em
que se remeteu sobretudo ao mundo acadêmico, designadamente na Universidade de
Birmingham, Reino Unido, regressa aos discos e em grande forma.
Em “Beast”, com selo da Whirlwind – após “Live In Brooklyn”,
de 2016, e “The Anton Webern Project”, de 2013 –, escutamo-lo a tocar ao vivo
com um novo grupo multigeracional de músicos da fértil cena de improvisação
portuguesa e europeia. O pianista é o alemão Samuel Gapp e a secção rítmica é
assegurada por Zé Almeida no contrabaixo e pelo baterista João Lencastre. Esta
gravação é a primeira em que o saxofonista norte-americano se posiciona como
líder com a formação clássica de quarteto de piano. «Acho que já era altura, eu
adoro piano», confessa o músico em notas de apresentação do álbum. «Fiz uma
sessão com o Zé quando me mudei para cá e ele tinha um som incrível. Depois,
pouco tempo depois, o saxofonista tenor Noah Preminger apresentou-me ao João
Lencastre, que por acaso mora no meu bairro. E o João apresentou-me ao Samuel,
que acabou de terminar aqui um mestrado em composição clássica. Quando tocamos
juntos pela primeira vez, a banda foi muito boa desde o início.»
O’Gallagher dá mais um passo nesse contínuo e insondável
processo de exploração das possibilidades que se abrem com um novo conjunto de
colaboradores num novo país. O músico norte-americano admite-o sem rodeios:
«Uma das razões para me mudar para Portugal foi voltar à minha vida de músico
profissional, depois de ter passado os últimos anos no mundo acadêmico.
Acredito que é preciso sentir o timing das coisas, sentir o fluxo do que
parece certo.» Registrado ao vivo na Sociedade Musical União Paredense (SMUP),
no início de novembro de 2022, o álbum apresenta quatro peças improvisadas
extensas, duas das quais baseadas em ideias compostas pelo saxofonista como
inspiração para explorar território desconhecido, manipulando timbre e
densidade, bem como intensidade e ritmo. «As minhas composições são usadas como
estruturas, com a ressalva de que só devem ser usadas para dar coesão quando
sentimos a necessidade. Caso contrário, está tudo em aberto», explica
O’Gallagher. A música esbate intuitivamente as fronteiras entre composição e
improvisação e entre liberdade e estrutura. «O que mais gosto em tocar em
grupos como este é quando acontece algo inesperado e o público sente e reage a
esses momentos. Quanto mais conseguirmos criar esses momentos especiais e alimentá-los,
melhor. É a música contada de uma forma diferente», sublinha o saxofonista
norte-americano.
Ao longo dos seus 20 minutos de duração, “Permeable” é uma
mostra da coleção de variações de texturas, dinâmicas e intensidades.
Introduzida pelo dramatismo do contrabaixo, a que se vêm juntar o saxofone
altivo de O’Gallagher, o piano e uma dupla rítmica em permanente ebulição. É um
Samuel Gapp em estado de graça quem nos oferece um primeiro solo notável,
prenhe de angulosidades, que antecede um outro no qual o saxofonista solta as amarras
e tergiversa livremente. A atmosfera da peça altera-se então numa secção de
contornos de certa forma mais camerísticos, com saxofone a sussurrar-nos ao
ouvido, o contrabaixo a aditar dramatismo, a bateria hiperdetalhada, as notas
esparsas do piano. A música adquire então uma densidade crescente até se
confundir com o silêncio. “Quixotica” é uma composição simples, que se repete
com variações dentro de parâmetros tetracordes pré-definidos. Começa tranquila,
com o saxofone a lançar pistas que o piano desenvolve demoradamente, com
Almeida e Lencastre a ferverem em lume brando. O saxofone reentra em tom
lamentoso que progressivamente vai adquirindo uma fogosidade que se atenua no
estertor da peça.
“Practically Speaking” começa por ser uma lenta ruminação em
trio, serena e detalhada, com a dupla rítmica a exibir os seus níveis de
interação no domínio do telepático. O saxofone junta-se na sua elegância
sinuosa. («O João e o Zé formam uma equipa fantástica. Partilham os mesmos instintos
sobre como enquadrar as coisas, e quando algo novo precisa de ser gerado ou
contrastado. A sua forma de tocar dá vida à dinâmica e à direção da música e
permite que um capítulo musical termine e outro comece.») A encerrar a jornada,
“Phishing for Paramecium” deve o título a certa experiência de um professor do
Massachusetts Institute of Technology (MIT). «É o que tentamos fazer na música
– imaginar o inimaginável», diz o saxofonista. «Neste tipo de situação aberta,
em que há muito pouco a definir, o sucesso da música depende da química dos
músicos e, com estes músicos, a química estava imediatamente presente -
sente-se logo. É o intangível que todos procuramos», acrescenta. A peça
prolonga a atmosfera contemplativa, aqui de contornos mais camerísticos,
esdrúxulos, que de alguma forma se vão densificando, sempre com o saxofone a
guiar, o piano a desafiá-lo harmonicamente e a dupla rítmica a aditar elementos
decisivos para o cômputo. Tudo volta a aquietar-se, adquirindo uma aura
espiritual. Exponenciando as virtudes da improvisação, “Beast” é um álbum que
reclama o nosso maior foco. Em audições sucessivas, revela-se em todas as suas
dimensões, num processo altamente recompensador.
Faixas
1.Permeable
21:05
2.Quixotica
10:05
3.Practically
Speaking 06:26
4.Fishing for Paramecium 09:23
Músicos: John O’Gallagher— saxofone alto; Samuel Gapp— piano; Zé Almeida— contrabaixo; João Lencastre— bateria.
Fonte: António Branco (jazz.pt)
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