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sábado, 1 de março de 2025

SAMUEL LERCHER TRIO – FRACTAL (Sintoma)

Samuel Lercher (nascido em 1980) é um pianista e compositor nascido em Paris e há muito estabelecido (e reconhecido) na cena portuguesa do jazz, mas não apenas. Acaba de lançar “Fractal”, o terceiro álbum do seu trio, fundado há precisamente uma década, depois de “Épilogue” (Sintoma, 2015) – no qual esboçou as bases da sua linguagem pianística e do som do trio – e de “Ballade” (Edição de autor, 2022), no qual alargou consideravelmente o leque de opções sonoras. Este é também o segundo álbum em que surge acompanhado por uma dupla rítmica que se cruzou pela primeira vez em 2016, formada pelo contrabaixista André Rosinha e pelo baterista Bruno Pedroso, músicos de gerações distintas, mas de créditos que dispensam encômios. Por cá, será de reavivar memórias, o pianista trabalhou repertório oriundo do cinema francês (com a cantora Vânia Fernandes), da “chanson française” (com a cantora Lou Tavano) e fundou o Fauksa Quartet, consórcio luso-gaulês – que se completa com Hamza Touré, Freddy Blondeau e Rui Pereira – que em 2022 editou o álbum “Or”. Integra ainda o quarteto Not There Yet com Daniel Neto, Gonçalo Leonardo e o mesmo Pereira, que editou também em 2022 o seu registo de estreia, “Which Way?”. Tem trabalhado de forma próxima com Salvador Sobral, com destaque para o espetáculo dedicado à obra de Jacques Brel.

Mas é com o trio que Samuel Lercher leva mais longe a sua arte. A música tem vindo progressivamente a questionar os formalismos do consórcio piano-contrabaixo-bateria, assumindo riscos crescentes, sem abdicar das suas características particulares. Lercher tem burilado uma abordagem própria, vertida numa clareza discursiva e num melodismo cativante. Em “Fractal”, de novo com selo da Sintoma, a música que faz continua delicadamente estruturada e de toque elegante, assente numa sólida formação clássica, a que a dado momento se juntou o jazz – as influências neste domínio são múltiplas: Monk, Evans, Jarrett, Mehldau –, mas também com elementos da canção francesa, da tradição clássica e por traços de uma “portugalidade” paulatinamente entranhada. «Já antes de conhecer Portugal, vibrava com os noturnos e mazurcas de Chopin que transbordam de melancolia, saudade e folclore polaco, nesse caso. Quando cheguei a Portugal e comecei a ouvir fado, senti similitudes com a música de Chopin, principalmente nas passagens em tonalidade menor», começa por dizer Samuel Lercher à jazz.pt. «Vivo em Portugal há vinte anos, existe de fato uma certa “portugalidade” em mim e considero-me parte integrante da cena musical portuguesa.” Ao terceiro disco, o pianista luso-francês volta a evidenciar o seu virtuosismo consequente e essa particular queda para estabelecer elos criativos entre a clássica e o jazz. «”Fractal" foi o fruto de um processo de amadurecimento pessoal e musical. Durante esse período de preparação dediquei-me ao estudo de Tigran Hamasyan, Frédéric Chopin e Shai Maestro. O estudo desses compositores trouxe-me uma abordagem mais rica e variada na construção das formas, nas polirritmias, nas melodias, no som e na interação», sublinha Lercher.

É aqui mesmo, neste espaço de interseções e desafios, que desnuda a sua marca identitária enquanto compositor e intérprete.  «Ao longo dos anos, e com a evolução das minhas composições, fomos desenvolvendo muitas combinações e equilíbrios instrumentais diferentes. É, na minha perspectiva, o que faz a riqueza de um trio», reforça. Este álbum revela um cariz marcado autobiográfico, um mergulho introspetivo no “eu” homem e músico. «A partida inesperada de um familiar muito próximo obrigou-me a ir à minha essência para prosseguir com os meus projetos musicais. Foi durante esse período de superação que nasceram os temas que compõem o álbum», explica Lercher. A música continua particularmente elegante, com a componente melódica a desempenhar um papel pivotal. «Os meus modelos a nível melódicos e harmónicos são os grandes compositores de música erudita, Bach, Beethoven, Chopin, Brahms, Debussy, Ravel, Lopes-Graça entre outros. O estudo do repertório desses compositores marcou-me muito e isso transparece bastante nas minhas composições», diz o pianista.

Cada composição procura retratar uma parte das vivências do pianista, o seu percurso, a família, a sua vinda para Portugal, o luto, as viagens e o equilíbrio que logrou entre a música clássica e o jazz. Se um fractal é uma composição geométrica cujas partes separadas repetem a forma do todo, mas em escalas distintas. A analogia com esta sinfonia geométrica, amiúde encontrada na natureza, reflete-se também na componente rítmica das composições, ao nível da sobreposição de compassos e de motivos melódicos que são, por si só, fractais rítmicos. “Simon’s Groove”, dedicada ao filho, abre o álbum com pinceladas impressionistas e um balanço vívido, com o piano a tergiversar entre vários registos, Rosinha a recorrer ao arco aditando gravidade e Pedroso a mostrar uma leveza poderosa. “Or’Anda, Desanda”, tema tradicional da região de Vinhais, Trás-os-Montes, conhece aqui um arranjo escrito a meias com João Godinho, com melodia espaçosa de que se ergue um belo solo de contrabaixo, até tudo se esvair em silêncio. As atmosferas animadas regressam em “P’ti Voyou” – dedicada ao outro filho do pianista –, uma canção a que faltam as palavras (embora as possamos imaginar), com a dupla rítmica a suportar com viço os voos de Lercher, conferindo carácter dançável do tema, com acentos folclóricos. O tema assume vários ritmos, tempos e compassos sobrepostos (os ditos fractais rítmicos). De inspiração vincadamente clássica, “Salvador” é tour-de-force para o decantado lirismo e sentido melódico do pianista.

“Luto” traz uma benfazeja energia, com o pianista a lançar a melodia-base, em que a dupla rítmica pega e explora com pinças, acrescentando ideias. O piano reentra e eleva os níveis de intensidade, com o trio a exponenciar a interação tripartida, com destaque para a criatividade de Bruno Pedroso, que atinge o clímax no seu solo final.  O lado mais poético da abordagem de Lercher volta a surgir claríssimo em “Épilogue” – peça que emprestou o título ao primeiro álbum do trio do pianista, que aqui revisita, em nova etapa para resolver a “luta interna” entre as influências clássicas e jazzísticas. O disco termina com uma suíte que agrega duas peças separadas por um interlúdio, “Or - Sara”. “Or” é o tema o único tema com swing do álbum – e ecos coltraneanos –, e que carreia as inspirações colhidas durantes viagens pelo norte de África; o interlúdio impressionista, ancorado no rubato, abre espaço para a luz que emana de “Sara”, de que avulta o solo final do baterista. O pianismo de Samuel Lercher mantém-se irrepreensível, porventura mais depurado e subtil; porém, é enquanto compositor que dá aqui um vigoroso salto em frente.

Faixas

1 Simon's Groove 07:04

2 Or'anda, Desanda 04:32

3 P'ti Voyou 05:35

4 Salvador 04:08

5 Luto 06:24

6 Épilogue 03:52

7 Or – Sara 14:41

 Músicos: Samuel Lercher— piano; André Rosinha— contrabaixo; Bruno Pedroso— bateria.

Fonte: António Branco (jazz.pt)

 

 

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