Samuel
Lercher (nascido em 1980) é um pianista e compositor nascido em Paris e há
muito estabelecido (e reconhecido) na cena portuguesa do jazz, mas não apenas.
Acaba de lançar “Fractal”, o terceiro álbum do seu trio, fundado há
precisamente uma década, depois de “Épilogue” (Sintoma, 2015) – no qual esboçou
as bases da sua linguagem pianística e do som do trio – e de “Ballade” (Edição
de autor, 2022), no qual alargou consideravelmente o leque de opções sonoras.
Este é também o segundo álbum em que surge acompanhado por uma dupla rítmica
que se cruzou pela primeira vez em 2016, formada pelo contrabaixista André
Rosinha e pelo baterista Bruno Pedroso, músicos de gerações distintas, mas de
créditos que dispensam encômios. Por cá, será de reavivar memórias, o pianista
trabalhou repertório oriundo do cinema francês (com a cantora Vânia Fernandes),
da “chanson française” (com a cantora Lou Tavano) e fundou o Fauksa Quartet,
consórcio luso-gaulês – que se completa com Hamza Touré, Freddy Blondeau e Rui
Pereira – que em 2022 editou o álbum “Or”. Integra ainda o quarteto Not There
Yet com Daniel Neto, Gonçalo Leonardo e o mesmo Pereira, que editou também em
2022 o seu registo de estreia, “Which Way?”. Tem trabalhado de forma próxima
com Salvador Sobral, com destaque para o espetáculo dedicado à obra de Jacques
Brel.
Mas é com o
trio que Samuel Lercher leva mais longe a sua arte. A música tem vindo
progressivamente a questionar os formalismos do consórcio piano-contrabaixo-bateria,
assumindo riscos crescentes, sem abdicar das suas características particulares.
Lercher tem burilado uma abordagem própria, vertida numa clareza discursiva e
num melodismo cativante. Em “Fractal”, de novo com selo da Sintoma, a música
que faz continua delicadamente estruturada e de toque elegante, assente numa
sólida formação clássica, a que a dado momento se juntou o jazz – as
influências neste domínio são múltiplas: Monk, Evans, Jarrett, Mehldau –, mas
também com elementos da canção francesa, da tradição clássica e por traços de
uma “portugalidade” paulatinamente entranhada. «Já antes de conhecer Portugal,
vibrava com os noturnos e mazurcas de Chopin que transbordam de melancolia,
saudade e folclore polaco, nesse caso. Quando cheguei a Portugal e comecei a
ouvir fado, senti similitudes com a música de Chopin, principalmente nas
passagens em tonalidade menor», começa por dizer Samuel Lercher à jazz.pt.
«Vivo em Portugal há vinte anos, existe de fato uma certa “portugalidade” em mim
e considero-me parte integrante da cena musical portuguesa.” Ao terceiro disco,
o pianista luso-francês volta a evidenciar o seu virtuosismo consequente e essa
particular queda para estabelecer elos criativos entre a clássica e o jazz.
«”Fractal" foi o fruto de um processo de amadurecimento pessoal e musical.
Durante esse período de preparação dediquei-me ao estudo de Tigran Hamasyan,
Frédéric Chopin e Shai Maestro. O estudo desses compositores trouxe-me uma
abordagem mais rica e variada na construção das formas, nas polirritmias, nas
melodias, no som e na interação», sublinha Lercher.
É aqui mesmo,
neste espaço de interseções e desafios, que desnuda a sua marca identitária
enquanto compositor e intérprete. «Ao
longo dos anos, e com a evolução das minhas composições, fomos desenvolvendo
muitas combinações e equilíbrios instrumentais diferentes. É, na minha perspectiva,
o que faz a riqueza de um trio», reforça. Este álbum revela um cariz marcado
autobiográfico, um mergulho introspetivo no “eu” homem e músico. «A partida
inesperada de um familiar muito próximo obrigou-me a ir à minha essência para
prosseguir com os meus projetos musicais. Foi durante esse período de superação
que nasceram os temas que compõem o álbum», explica Lercher. A música continua
particularmente elegante, com a componente melódica a desempenhar um papel
pivotal. «Os meus modelos a nível melódicos e harmónicos são os grandes
compositores de música erudita, Bach, Beethoven, Chopin, Brahms, Debussy,
Ravel, Lopes-Graça entre outros. O estudo do repertório desses compositores
marcou-me muito e isso transparece bastante nas minhas composições», diz o
pianista.
Cada
composição procura retratar uma parte das vivências do pianista, o seu
percurso, a família, a sua vinda para Portugal, o luto, as viagens e o
equilíbrio que logrou entre a música clássica e o jazz. Se um fractal é uma
composição geométrica cujas partes separadas repetem a forma do todo, mas em
escalas distintas. A analogia com esta sinfonia geométrica, amiúde encontrada
na natureza, reflete-se também na componente rítmica das composições, ao nível
da sobreposição de compassos e de motivos melódicos que são, por si só,
fractais rítmicos. “Simon’s Groove”, dedicada ao filho, abre o álbum com
pinceladas impressionistas e um balanço vívido, com o piano a tergiversar entre
vários registos, Rosinha a recorrer ao arco aditando gravidade e Pedroso a
mostrar uma leveza poderosa. “Or’Anda, Desanda”, tema tradicional da região de
Vinhais, Trás-os-Montes, conhece aqui um arranjo escrito a meias com João
Godinho, com melodia espaçosa de que se ergue um belo solo de contrabaixo, até
tudo se esvair em silêncio. As atmosferas animadas regressam em “P’ti Voyou” –
dedicada ao outro filho do pianista –, uma canção a que faltam as palavras
(embora as possamos imaginar), com a dupla rítmica a suportar com viço os voos
de Lercher, conferindo carácter dançável do tema, com acentos folclóricos. O
tema assume vários ritmos, tempos e compassos sobrepostos (os ditos fractais
rítmicos). De inspiração vincadamente clássica, “Salvador” é tour-de-force para
o decantado lirismo e sentido melódico do pianista.
“Luto” traz
uma benfazeja energia, com o pianista a lançar a melodia-base, em que a dupla
rítmica pega e explora com pinças, acrescentando ideias. O piano reentra e
eleva os níveis de intensidade, com o trio a exponenciar a interação
tripartida, com destaque para a criatividade de Bruno Pedroso, que atinge o
clímax no seu solo final. O lado mais
poético da abordagem de Lercher volta a surgir claríssimo em “Épilogue” – peça
que emprestou o título ao primeiro álbum do trio do pianista, que aqui
revisita, em nova etapa para resolver a “luta interna” entre as influências
clássicas e jazzísticas. O disco termina com uma suíte que agrega duas peças
separadas por um interlúdio, “Or - Sara”. “Or” é o tema o único tema com swing
do álbum – e ecos coltraneanos –, e que carreia as inspirações colhidas
durantes viagens pelo norte de África; o interlúdio impressionista, ancorado no
rubato, abre espaço para a luz que emana de “Sara”, de que avulta o solo final
do baterista. O pianismo de Samuel Lercher mantém-se irrepreensível, porventura
mais depurado e subtil; porém, é enquanto compositor que dá aqui um vigoroso
salto em frente.
Faixas
1 Simon's Groove 07:04
2 Or'anda, Desanda 04:32
3 P'ti Voyou 05:35
4 Salvador 04:08
5 Luto 06:24
6 Épilogue 03:52
7 Or – Sara 14:41
Fonte:
António Branco (jazz.pt)
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