O jazz e a
música improvisada nacionais constituem um ecossistema que vive uma fase de
grande exuberância. O número de novos projetos e colaborações, nos mais
diversos contextos sónicos e geometrias instrumentais, é surpreendente. Um dos
projetos que mais interesse tem vindo a suscitar é o que junta dois jovens, mas
preparadíssimos músicos, ativamente presentes na cena lisboeta, certezas mais
do que promessas: o vibrafonista Duarte Ventura e o saxofonista João Gato. Em
conjunto, exploram o universo vasto da improvisação no seu álbum colaborativo
de estreia, “Trafiklys”, com chancela da Timbuktu Records. «“Trafiklys” é um
registro da pesquisa que temos feito em duo durante os últimos três anos, uma
documentação do nosso desenvolvimento de um tipo de comunicação instantânea
enquanto interpretes e improvisadores», começam por dizer à jazz.pt. Apesar dos
pontos de contato com o trabalho levado a cabo noutras formações, a
instrumentação reduzida permite que rasgar espaço para uma desconstrução mais
concreta da música que escrevem. «Tocamos bastante em sessões e diferentes
constelações durante a licenciatura e fez sentido explorarmos este formato mais
intimista», referem. O duo começou a tomar forma em 2021, com sessões em que
experimentavam composições de ambos. Mas o processo que realmente mais os
interessou foi o de «experimentar standards sem papéis/estrutura
definidos, onde pudéssemos saltar rapidamente entre camadas e pavimentação
narrativa, onde o tempo fosse abstrato e elástico, mas ainda existisse uma
noção estrutural que desse uma visão geral ao tema todo», explicam.
Duarte
Ventura é um vibrafonista e compositor de 23 anos que depois de estudar
vibrafone na vertente jazz no Curso Profissional de Instrumentista de Jazz do
Conservatório de Música de Coimbra ingressou na Escola Superior de Música de
Lisboa. Lidera os seus próprios grupos de música original – Godua, Duarte
Ventura Trio e Quinteto, este último vencedor do Prémio Jovens Músicos 2023.
Integra ainda vários grupos na condição de acompanhante, como Apophenia e o
quinteto da cantora e compositora Marta Rodrigues. Da mesma geração, o saxofonista
João Gato frequentou o curso prático de jazz da Escola de Jazz Luís Villas
Boas, que concluiu em 2018 depois de três anos de aulas com Ricardo Toscano.
Nesse mesmo ano ingressou na licenciatura em Saxofone Jazz na Escola Superior
de Música de Lisboa, que concluiu em 2021. Faz também parte de projetos como
Filipa Franco Quinteto, Sonic Voyaging, S.E Pony e Orquestra de Jazz de
Setúbal. No álbum “Trafiklys” – gravado nos estúdios Timbuktu em julho de 2023
por André Fernandes – apresentam composições de ambos numa abordagem à
improvisação em duo sem preconceitos, através de reinvenções mutantes (o termo
é deles) de standards, e de composições próprias, em que o tempo e forma
tornam-se conceitos dúbios, mas sempre presentes. Privilegiam «a interação e comunicação
entre dois instrumentos que procuram uma linguagem alucinante».
Ancorados
numa mentalidade partilhada de busca de compreensão da tradição e da «subversão
das suas expetativas», como sublinham, o duo procura «um estilo de comunicação
imediato, multicamada e não-hierárquico», baseada em pesquisa e lógica,
combinando os timbres específicos dos seus instrumentos para criar um novo
universo sonoro particular. E o que querem dizer com isto? «Multicamada e não
hierárquica vem do fato de retirarmos o papel de acompanhador estático da
equação; logo, qualquer um dos dois pode assumir qualquer camada sónica e papel
a qualquer momento.» «Imediata vem do tipo de comunicação que tentamos
estabelecer na improvisação em primeiro plano, reagir o mais rápido possível ao
input sônico do outro, seja em momentos livres ou em estruturas»,
acrescentam. O duo vibrafone-saxofone (configuração pouco habitual, diga-se)
coloca desafios: «a falta de chão sônico é uma questão óbvia, algo nas
frequências graves que nos prenda ao chão e evite o caminho de manter a música
num registo aéreo, eternamente espacial.» Um exercício que praticaram nas
sessões de trabalho conjuntas foi precisamente o de encontrar «sítios onde nos
encontremos a improvisar e possamos tomar balanço para saltar cada um para a
sua direção.» A proximidade dos timbres foi outra questão: «O vibrafone tem um
som naturalmente brilhante e o timbre do alto também se presta mais a esse tipo
de registro, o que pode criar alguma falta de equilíbrio entre luz e
escuridão.» A forma que encontraram para abordar este aspecto foi trabalhar a
«exploração de timbres alternativos em ambos os instrumentos e em perceber como
orquestrar ritmicamente o duo.»
A tradição do
jazz também é algo bem presente na música que fazem: «Ambos partimos da
admiração que nutrimos pela tradição e tentamos mudá-la para se tornar
relevante para o caráter menos estrutural e ambíguo da improvisação livre.» As
composições são pensadas como sem distinção entre composição e improvisação.
«Aquilo que está escrito deve ser tão espontâneo e vivo como aquilo que é
improvisado e a improvisação parte do mesmo universo do material escrito, seja
de uma forma mais óbvia ou mais abstrata.» No auroral “Bebop de Marte” três
fragmentos de cada um focados num parâmetro diferente, que contextualizam com
improvisação. Ao sopro primordial de Gato junta-se o vibrafone etéreo de
Ventura, numa peça que dá mote claro para o que virá depois (sugerem-nos que o
façamos segundo uma certa ordem, o que é significativo). O vibrafone entra em
terrenos de particular delicadeza e abre espaço para o saxofone segredar-nos ao
ouvido. “Sinopse” envolve-nos numa nuvem de tranquilidade, com os sussurros
melódicos de Gato e o vibrafone recatado, numa repetição de tema com diferentes
nuances e mudanças de abordagem ao mesmo motivo. Também em “Ilusão”, peça
escrita em conjunto, somos interpelados pelo saxofone loquaz, que o vibrafone
logo contrasta, agitando ou aquietando, com o tema a ser interpelado sempre de
modo diferente cada vez que é repetido. Uma bela linha melódica paira. (Foi
Houdini quem disse que «a criatividade é a faísca que acende a nossa imaginação
e nos leva a experimentar coisas novas.») Miniatura de filigrana, “Interlude I”
é antecâmara para “CPC”, a peça mais extensa do álbum, onde nos envolve uma
nuvem de serenidade, com a flauta encantatória e depois o saxofone sem pressas,
sobre as notas esparsas e em subtil mutação do vibrafone e da percussão. Em
“We’re Out of Here” – baseada em “Out of Nowhere”, de Johnny Green –, o duo
ilustra o seu processo de revisitar standards, numa conversa animada
entre os dois instrumentos. “Interlude II” é outra vinheta, esta de atmosfera
mais misteriosa, e o agitado “1”, registrado ao vivo na Casa Cheia, traz um
diálogo vívido entre vibrafone e saxofone, uma «peça com o objetivo de errar»,
de modo a que os erros signifiquem momento de recomeço e de parênteses na
improvisação.
Faixas
1.Intro 02:10
2.A Flor da Laranjeira 03:07
3.Interlúdio I 01:59
4.Improv. 07:10
5.Ainda não espelho 03:10
6.Monte dos Marmeleiros 05:11
7.FX Retro 03:17
8.Coral 09:14
Músicos: Duarte Ventura— vibrafone, percussão; João Gato— saxofone alto, flauta.
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