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sábado, 5 de abril de 2025

DUARTE VENTURA / JOÃO GATO – TRAFIKLYS (Timbuktu)

O jazz e a música improvisada nacionais constituem um ecossistema que vive uma fase de grande exuberância. O número de novos projetos e colaborações, nos mais diversos contextos sónicos e geometrias instrumentais, é surpreendente. Um dos projetos que mais interesse tem vindo a suscitar é o que junta dois jovens, mas preparadíssimos músicos, ativamente presentes na cena lisboeta, certezas mais do que promessas: o vibrafonista Duarte Ventura e o saxofonista João Gato. Em conjunto, exploram o universo vasto da improvisação no seu álbum colaborativo de estreia, “Trafiklys”, com chancela da Timbuktu Records. «“Trafiklys” é um registro da pesquisa que temos feito em duo durante os últimos três anos, uma documentação do nosso desenvolvimento de um tipo de comunicação instantânea enquanto interpretes e improvisadores», começam por dizer à jazz.pt. Apesar dos pontos de contato com o trabalho levado a cabo noutras formações, a instrumentação reduzida permite que rasgar espaço para uma desconstrução mais concreta da música que escrevem. «Tocamos bastante em sessões e diferentes constelações durante a licenciatura e fez sentido explorarmos este formato mais intimista», referem. O duo começou a tomar forma em 2021, com sessões em que experimentavam composições de ambos. Mas o processo que realmente mais os interessou foi o de «experimentar standards sem papéis/estrutura definidos, onde pudéssemos saltar rapidamente entre camadas e pavimentação narrativa, onde o tempo fosse abstrato e elástico, mas ainda existisse uma noção estrutural que desse uma visão geral ao tema todo», explicam.

Duarte Ventura é um vibrafonista e compositor de 23 anos que depois de estudar vibrafone na vertente jazz no Curso Profissional de Instrumentista de Jazz do Conservatório de Música de Coimbra ingressou na Escola Superior de Música de Lisboa. Lidera os seus próprios grupos de música original – Godua, Duarte Ventura Trio e Quinteto, este último vencedor do Prémio Jovens Músicos 2023. Integra ainda vários grupos na condição de acompanhante, como Apophenia e o quinteto da cantora e compositora Marta Rodrigues. Da mesma geração, o saxofonista João Gato frequentou o curso prático de jazz da Escola de Jazz Luís Villas Boas, que concluiu em 2018 depois de três anos de aulas com Ricardo Toscano. Nesse mesmo ano ingressou na licenciatura em Saxofone Jazz na Escola Superior de Música de Lisboa, que concluiu em 2021. Faz também parte de projetos como Filipa Franco Quinteto, Sonic Voyaging, S.E Pony e Orquestra de Jazz de Setúbal. No álbum “Trafiklys” – gravado nos estúdios Timbuktu em julho de 2023 por André Fernandes – apresentam composições de ambos numa abordagem à improvisação em duo sem preconceitos, através de reinvenções mutantes (o termo é deles) de standards, e de composições próprias, em que o tempo e forma tornam-se conceitos dúbios, mas sempre presentes. Privilegiam «a interação e comunicação entre dois instrumentos que procuram uma linguagem alucinante».

Ancorados numa mentalidade partilhada de busca de compreensão da tradição e da «subversão das suas expetativas», como sublinham, o duo procura «um estilo de comunicação imediato, multicamada e não-hierárquico», baseada em pesquisa e lógica, combinando os timbres específicos dos seus instrumentos para criar um novo universo sonoro particular. E o que querem dizer com isto? «Multicamada e não hierárquica vem do fato de retirarmos o papel de acompanhador estático da equação; logo, qualquer um dos dois pode assumir qualquer camada sónica e papel a qualquer momento.» «Imediata vem do tipo de comunicação que tentamos estabelecer na improvisação em primeiro plano, reagir o mais rápido possível ao input sônico do outro, seja em momentos livres ou em estruturas», acrescentam. O duo vibrafone-saxofone (configuração pouco habitual, diga-se) coloca desafios: «a falta de chão sônico é uma questão óbvia, algo nas frequências graves que nos prenda ao chão e evite o caminho de manter a música num registo aéreo, eternamente espacial.» Um exercício que praticaram nas sessões de trabalho conjuntas foi precisamente o de encontrar «sítios onde nos encontremos a improvisar e possamos tomar balanço para saltar cada um para a sua direção.» A proximidade dos timbres foi outra questão: «O vibrafone tem um som naturalmente brilhante e o timbre do alto também se presta mais a esse tipo de registro, o que pode criar alguma falta de equilíbrio entre luz e escuridão.» A forma que encontraram para abordar este aspecto foi trabalhar a «exploração de timbres alternativos em ambos os instrumentos e em perceber como orquestrar ritmicamente o duo.»

A tradição do jazz também é algo bem presente na música que fazem: «Ambos partimos da admiração que nutrimos pela tradição e tentamos mudá-la para se tornar relevante para o caráter menos estrutural e ambíguo da improvisação livre.» As composições são pensadas como sem distinção entre composição e improvisação. «Aquilo que está escrito deve ser tão espontâneo e vivo como aquilo que é improvisado e a improvisação parte do mesmo universo do material escrito, seja de uma forma mais óbvia ou mais abstrata.» No auroral “Bebop de Marte” três fragmentos de cada um focados num parâmetro diferente, que contextualizam com improvisação. Ao sopro primordial de Gato junta-se o vibrafone etéreo de Ventura, numa peça que dá mote claro para o que virá depois (sugerem-nos que o façamos segundo uma certa ordem, o que é significativo). O vibrafone entra em terrenos de particular delicadeza e abre espaço para o saxofone segredar-nos ao ouvido. “Sinopse” envolve-nos numa nuvem de tranquilidade, com os sussurros melódicos de Gato e o vibrafone recatado, numa repetição de tema com diferentes nuances e mudanças de abordagem ao mesmo motivo. Também em “Ilusão”, peça escrita em conjunto, somos interpelados pelo saxofone loquaz, que o vibrafone logo contrasta, agitando ou aquietando, com o tema a ser interpelado sempre de modo diferente cada vez que é repetido. Uma bela linha melódica paira. (Foi Houdini quem disse que «a criatividade é a faísca que acende a nossa imaginação e nos leva a experimentar coisas novas.») Miniatura de filigrana, “Interlude I” é antecâmara para “CPC”, a peça mais extensa do álbum, onde nos envolve uma nuvem de serenidade, com a flauta encantatória e depois o saxofone sem pressas, sobre as notas esparsas e em subtil mutação do vibrafone e da percussão. Em “We’re Out of Here” – baseada em “Out of Nowhere”, de Johnny Green –, o duo ilustra o seu processo de revisitar standards, numa conversa animada entre os dois instrumentos. “Interlude II” é outra vinheta, esta de atmosfera mais misteriosa, e o agitado “1”, registrado ao vivo na Casa Cheia, traz um diálogo vívido entre vibrafone e saxofone, uma «peça com o objetivo de errar», de modo a que os erros signifiquem momento de recomeço e de parênteses na improvisação.

Faixas

1.Intro 02:10

2.A Flor da Laranjeira 03:07

3.Interlúdio I 01:59

4.Improv. 07:10

5.Ainda não espelho 03:10

6.Monte dos Marmeleiros 05:11

7.FX Retro 03:17

8.Coral 09:14

Músicos: Duarte Ventura— vibrafone, percussão; João Gato— saxofone alto, flauta.

 Fonte: António Branco (jazz.pt)

 

 

 

 

 

 

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