Intitular o
resultado do labor criativo não será tarefa isenta de sobressaltos. Há títulos
mais solenes, os palavrosos, os críticos, não poucos presunçosos; há também os
diretos e descomplexados, os que aludem a um instante especial, um tempo, um
espaço, por vezes no limiar do indizível. O trompetista, compositor e
improvisador Luís Vicente acertou em cheio no nome que deu ao seu mais recente
álbum, acabado de sair na Clean Feed, “Come Down Here”, o segundo de um super
trio que o junta ao contrabaixista Gonçalo Almeida e ao baterista Pedro Melo
Alves. Sabemos há muito que a comunicação e o diálogo, com os outros e consigo
próprio, e também com o entorno, elemento essencial para o discurso, são
centrais na sua abordagem, desenvolvida de modo tentacular e em múltiplos
contextos e configurações instrumentais. Este “vem cá” tem por isso muito que
se lhe diga. «Podemos dizer que remete para a “vibração” da sala, do momento em
que estamos a tocar e sentimos que há como que uma presença de algo ou alguém
que nos transmite uma memória, um sentimento, idealmente bom», diz Luís Vicente
à jazz.pt «Como se fossemos tomados por algo que nos proporciona uma emoção e
que conduz parte do processo.»
Hiperativo,
nos planos nacional e, sobretudo, internacional, e apostando na liberdade de
movimentos, Luís Vicente ocupa um lugar na primeira fila do jazz de feição mais
aventureira e da música improvisada relacionada. Para além do trio e do
quarteto que lidera, integra outras formações como Chamber 4, Frame Trio,
Clocks and Clouds, Deux Maisons, Twenty One 4tet, In Layers ou Fail Better!; o
quarteto com John Dikeman, William Parker e Hamid Drake (“Goes Without Saying,
But It’s Got to Be Said” é inescapável); os trios com Seppe Gebruers e Onno
Govaert ou com Olie Brice e Mark Sanders; os duos com Vasco Trilla, Marcelo dos
Reis (vale a pena revisitar “(Un)Prepared Pieces for Guitar and Trumpet”) e
Jari Marjamaki. “Come Down Here” chega num momento em que os restantes
elementos do trio, Almeida e Melo Alves, têm também trabalhos acabados de sair,
e ambos igualmente com chancela da Clean Feed. O contrabaixista lançou “States
of Restraint”, gravado em trio com a trompetista Susana Santos Silva e o
percussionista Gustavo Costa; o baterista, por sua vez, deu à luz “Conundrum
Vol. 1”, compilação de gravações em duo no âmbito do ciclo de concertos
homónimo. «Existe um espírito genuíno, único dentro do grupo, de confiança e
amizade que se tem mantido e crescido ao longo do tempo», refere Vicente. «A
comunicação flui espontaneamente, existe claramente uma cumplicidade onde a
leitura dos movimentos de cada um é antecipada, evidenciando-se uma
profundidade na criação possível de surgir unicamente quando nos juntamos com
um determinado tipo de indivíduos, permitindo que as coisas surjam e se alcancem
momentos incríveis, diria que até mágicos.»
Três anos
depois do registo auroral do trio, “Chanting In The Name Of”, o novo “Come Down
Here” aposta na composição e estruturação de ideias a partir do amplo arsenal
vocabular que vem acumulando após anos de experiências e depurações. «Nós somos
os três improvisadores e compositores», sublinha Vicente. «As composições são
bastante concretas, mas ao mesmo tempo extremamente abertas, não sendo tocadas
sempre da mesma forma, tudo depende do dia, local, e do estado de espírito e da
maneira como nos relacionamos com o material escrito.» Este modus operandi,
revelador de um crescimento estético individual e coletivo, permite manter o
caráter orgânico, livre e elástico da abordagem que desenvolvem em conjunto. O
resultado é uma música aberta e pura, nutrida a partir de ideias e de valores
partilhados, sem que haja necessidade de elementos adicionais. Um motivo-base é
desenvolvido em várias direções graças à excelência dos três músicos em
presença. “Come Down Here” reitera um estilo, uma dinâmica e um fraseio do
antecessor, mas dá passos adiante. «Pretendeu-se que cada um de nós se
exprimisse sem preconceitos e tirasse o máximo partido das suas capacidades,
sobressaindo o caráter de cada um, atingindo-se assim um estado sônico onde a
própria música assume um papel preponderante, uma guia em que nós somos
simplesmente um canal que se conecta de determinada forma com o universo»,
refere o trompetista. Após apresentar a composição aos colegas, os três
desenvolvem o potencial do tema até determinado estado, «mantendo-se sempre em
aberto a forma de abordagem, deixando que a própria peça nos sugira direções e
formas diferentes de lidar com o conteúdo.»
Na peça que
dá título ao álbum, que abre a função, um motivo apresentado pelo trompetista
lança uma vivíssima interação entre os três músicos, elevando os níveis
energéticos aos píncaros. (Notável o solo de Melo Alves.) “Hope II” logo baixa
a fervura e introduz uma atmosfera camerística, com Vicente a aportar uma
solenidade benfazeja; Almeida recorre ao arco e Melo Alves adita pormenores de
filigrana, num tema de feição mais abstrata e de exploração de contrastes, que
remete para certa música contemporânea. Leitura especial de uma canção
afro-brasileira de autor desconhecido – habitualmente tocada em rodas de
capoeira ou cerimônias de candomblé –, “Mandei Caiar o Meu Sobrado” (“sobrado”
é a última morada, acredita-se que caiando o sobrado de amarelo a alma fará uma
viagem segura e tranquila para o além) é pedra angular de todo o álbum, prenhe
de uma gravidade telúrica (há sons que nos mergulham numa floresta densa) com a
melodia clara exposta pelo trompete – uma espécie de hino –, em torno da qual
gravitam contrabaixo e bateria. A interação evolui em crescendo, até que
desemboca num tremendo solo de Almeida, a que se junta a delicadeza das
percussões. O contrabaixo recorre de novo brevemente ao arco para rematar em
tons de mistério.
Como o título
deixa antever “Why No Is No” é focada e assertiva (Vicente define-a como «um
manifesto ao inconformismo, ao questionamento, à não aceitação, à negação»),
exponenciando a intensidade das interações cruzadas, de parada e resposta,
estímulos e contraestímulos. O vertiginoso final agita neurônios. São também do
corpulento cordofone os primeiros sons que se escutam em “Nascente”,
juntando-se o trompete – aqui num registo mais textural, com recurso a técnicas
estendidas – e a bateria sempre rica em pormenores, numa improvisação coletiva,
que parece remeter para a dinâmica de um curso de água, a espaços mais
tranquilo, noutros mais turbulento. A faixa de encerramento, “Penumbra”, peça
já com alguns anos e a mais extensa do álbum, outro dos seus momentos mais
altos, é uma joia sônica ricamente trabalhada, plena de detalhes que reclamam
audições repetidas para se revelarem na plenitude. O trompetista (que aqui
também faz uso da mbira) é exímio na forma como tergiversa entre registros,
jogos de luz e sombra, ora desfiando ideias melódicas, ora injetando uma
abstração consequente, a espaços desacompanhado. Almeida e Melo Alves logo
trazem uma densidade de onde se eleva mais uma notável intervenção do
contrabaixista, que conduz ao clímax.
Ao mesmo
tempo complexo e familiar, “Come Down Here” é um álbum que reconforta, como um
daqueles lugares especiais a que apetece voltar, uma e outra vez.
Faixas
1.Come
Down Here 05:23
2.Hope
II 04:23
3.Mandei Caiar o Meu Sobrado 08:34
4.Why No Is No 06:06
5.Nascente 04:26
6.Penumbra 11:01
Fonte: António
Branco (jazz.pt)
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