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sábado, 26 de abril de 2025

LUÍS VICENTE TRIO - COME DOWN HERE (Clean Feed)

Intitular o resultado do labor criativo não será tarefa isenta de sobressaltos. Há títulos mais solenes, os palavrosos, os críticos, não poucos presunçosos; há também os diretos e descomplexados, os que aludem a um instante especial, um tempo, um espaço, por vezes no limiar do indizível. O trompetista, compositor e improvisador Luís Vicente acertou em cheio no nome que deu ao seu mais recente álbum, acabado de sair na Clean Feed, “Come Down Here”, o segundo de um super trio que o junta ao contrabaixista Gonçalo Almeida e ao baterista Pedro Melo Alves. Sabemos há muito que a comunicação e o diálogo, com os outros e consigo próprio, e também com o entorno, elemento essencial para o discurso, são centrais na sua abordagem, desenvolvida de modo tentacular e em múltiplos contextos e configurações instrumentais. Este “vem cá” tem por isso muito que se lhe diga. «Podemos dizer que remete para a “vibração” da sala, do momento em que estamos a tocar e sentimos que há como que uma presença de algo ou alguém que nos transmite uma memória, um sentimento, idealmente bom», diz Luís Vicente à jazz.pt «Como se fossemos tomados por algo que nos proporciona uma emoção e que conduz parte do processo.»

Hiperativo, nos planos nacional e, sobretudo, internacional, e apostando na liberdade de movimentos, Luís Vicente ocupa um lugar na primeira fila do jazz de feição mais aventureira e da música improvisada relacionada. Para além do trio e do quarteto que lidera, integra outras formações como Chamber 4, Frame Trio, Clocks and Clouds, Deux Maisons, Twenty One 4tet, In Layers ou Fail Better!; o quarteto com John Dikeman, William Parker e Hamid Drake (“Goes Without Saying, But It’s Got to Be Said” é inescapável); os trios com Seppe Gebruers e Onno Govaert ou com Olie Brice e Mark Sanders; os duos com Vasco Trilla, Marcelo dos Reis (vale a pena revisitar “(Un)Prepared Pieces for Guitar and Trumpet”) e Jari Marjamaki. “Come Down Here” chega num momento em que os restantes elementos do trio, Almeida e Melo Alves, têm também trabalhos acabados de sair, e ambos igualmente com chancela da Clean Feed. O contrabaixista lançou “States of Restraint”, gravado em trio com a trompetista Susana Santos Silva e o percussionista Gustavo Costa; o baterista, por sua vez, deu à luz “Conundrum Vol. 1”, compilação de gravações em duo no âmbito do ciclo de concertos homónimo. «Existe um espírito genuíno, único dentro do grupo, de confiança e amizade que se tem mantido e crescido ao longo do tempo», refere Vicente. «A comunicação flui espontaneamente, existe claramente uma cumplicidade onde a leitura dos movimentos de cada um é antecipada, evidenciando-se uma profundidade na criação possível de surgir unicamente quando nos juntamos com um determinado tipo de indivíduos, permitindo que as coisas surjam e se alcancem momentos incríveis, diria que até mágicos.»

Três anos depois do registo auroral do trio, “Chanting In The Name Of”, o novo “Come Down Here” aposta na composição e estruturação de ideias a partir do amplo arsenal vocabular que vem acumulando após anos de experiências e depurações. «Nós somos os três improvisadores e compositores», sublinha Vicente. «As composições são bastante concretas, mas ao mesmo tempo extremamente abertas, não sendo tocadas sempre da mesma forma, tudo depende do dia, local, e do estado de espírito e da maneira como nos relacionamos com o material escrito.» Este modus operandi, revelador de um crescimento estético individual e coletivo, permite manter o caráter orgânico, livre e elástico da abordagem que desenvolvem em conjunto. O resultado é uma música aberta e pura, nutrida a partir de ideias e de valores partilhados, sem que haja necessidade de elementos adicionais. Um motivo-base é desenvolvido em várias direções graças à excelência dos três músicos em presença. “Come Down Here” reitera um estilo, uma dinâmica e um fraseio do antecessor, mas dá passos adiante. «Pretendeu-se que cada um de nós se exprimisse sem preconceitos e tirasse o máximo partido das suas capacidades, sobressaindo o caráter de cada um, atingindo-se assim um estado sônico onde a própria música assume um papel preponderante, uma guia em que nós somos simplesmente um canal que se conecta de determinada forma com o universo», refere o trompetista. Após apresentar a composição aos colegas, os três desenvolvem o potencial do tema até determinado estado, «mantendo-se sempre em aberto a forma de abordagem, deixando que a própria peça nos sugira direções e formas diferentes de lidar com o conteúdo.»

Na peça que dá título ao álbum, que abre a função, um motivo apresentado pelo trompetista lança uma vivíssima interação entre os três músicos, elevando os níveis energéticos aos píncaros. (Notável o solo de Melo Alves.) “Hope II” logo baixa a fervura e introduz uma atmosfera camerística, com Vicente a aportar uma solenidade benfazeja; Almeida recorre ao arco e Melo Alves adita pormenores de filigrana, num tema de feição mais abstrata e de exploração de contrastes, que remete para certa música contemporânea. Leitura especial de uma canção afro-brasileira de autor desconhecido – habitualmente tocada em rodas de capoeira ou cerimônias de candomblé –, “Mandei Caiar o Meu Sobrado” (“sobrado” é a última morada, acredita-se que caiando o sobrado de amarelo a alma fará uma viagem segura e tranquila para o além) é pedra angular de todo o álbum, prenhe de uma gravidade telúrica (há sons que nos mergulham numa floresta densa) com a melodia clara exposta pelo trompete – uma espécie de hino –, em torno da qual gravitam contrabaixo e bateria. A interação evolui em crescendo, até que desemboca num tremendo solo de Almeida, a que se junta a delicadeza das percussões. O contrabaixo recorre de novo brevemente ao arco para rematar em tons de mistério.

Como o título deixa antever “Why No Is No” é focada e assertiva (Vicente define-a como «um manifesto ao inconformismo, ao questionamento, à não aceitação, à negação»), exponenciando a intensidade das interações cruzadas, de parada e resposta, estímulos e contraestímulos. O vertiginoso final agita neurônios. São também do corpulento cordofone os primeiros sons que se escutam em “Nascente”, juntando-se o trompete – aqui num registo mais textural, com recurso a técnicas estendidas – e a bateria sempre rica em pormenores, numa improvisação coletiva, que parece remeter para a dinâmica de um curso de água, a espaços mais tranquilo, noutros mais turbulento. A faixa de encerramento, “Penumbra”, peça já com alguns anos e a mais extensa do álbum, outro dos seus momentos mais altos, é uma joia sônica ricamente trabalhada, plena de detalhes que reclamam audições repetidas para se revelarem na plenitude. O trompetista (que aqui também faz uso da mbira) é exímio na forma como tergiversa entre registros, jogos de luz e sombra, ora desfiando ideias melódicas, ora injetando uma abstração consequente, a espaços desacompanhado. Almeida e Melo Alves logo trazem uma densidade de onde se eleva mais uma notável intervenção do contrabaixista, que conduz ao clímax.

Ao mesmo tempo complexo e familiar, “Come Down Here” é um álbum que reconforta, como um daqueles lugares especiais a que apetece voltar, uma e outra vez.

Faixas

1.Come Down Here 05:23

2.Hope II 04:23

3.Mandei Caiar o Meu Sobrado 08:34

4.Why No Is No 06:06

5.Nascente 04:26

6.Penumbra 11:01

 Músicos: Luís Vicente— trompete, sinos, apito, mbira; Gonçalo Almeida— contrabaixo; Pedro Melo Alves— bateria, percussão, objetos.

Fonte: António Branco (jazz.pt)

 

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