O panorama nacional do jazz em todo o seu espectro
estilístico – que alguns teimam em tentar conter, esforço parecido ao do
«menino que carregava água na peneira» do poeta brasileiro Manoel de Barros –,
conhece um indisputável período de pujança. E esse panorama não se esgota nas
grandes cidades de Lisboa, Porto, Coimbra ou Braga. Um olhar mais atento e
territorialmente abrangente permite constatar a existência de projetos muito
interessantes noutros locais do país, que facilmente escapam ao olhar
preguiçoso e preconceituoso daqueles que entendem que para lá das baias das
grandes urbes só existe paisagem. Em Alcobaça, Hugo Trindade (n. 1980) tem
vindo a desenvolver uma interessante atividade. «Alcobaça é uma terra de
músicos e, desde a minha adolescência, tive o privilégio de crescer, aprender e
ser amigo de uma geração de grandes músicos, um pouco mais velhos do que eu, majoritariamente
ligados ao universo da música clássica e do jazz», começa por dizer Hugo
Trindade à jazz.pt. Depois de descobrir o jazz na adolescência dedica-se à
guitarra jazz como autodidata. Frequentou workshops com figuras gradas
das seis cordas como John Scofield (sobre quem trabalhará na tese), Marc Ribot,
Frank Möbus ou Jonathan Kreisberg. Mais tarde estuda com Mário Delgado e André
Fernandes na Universidade de Évora, onde se gradua em Jazz Performance. Para
além de um projeto a solo, toca com os conterrâneos Sérgio Carolino e Rúben da Luz
no grupo R´B & Mr. SC, mas também com os Sea Groove & The Ocean
Travellers e Audible Architecture. A sua discografia faz-se de seis títulos.
Desde 2005 é professor de guitarra, teoria e combo jazz na Academia de Música
de Alcobaça.
No seu projeto mais recente, “Clinic Sessions”, o
guitarrista fecha de algum modo um ciclo e retoma as suas influências e
aventuras iniciais no domínio do jazz e ao formato de quarteto ligado à
corrente, com guitarra elétrica, piano elétrico, baixo elétrico e bateria.
Edgar Alexandre, Aires Pereira e Luís Lane são os músicos que, respetivamente,
oficiam naqueles instrumentos e que, com diferentes percursos e orientações
musicais, aportam diferentes variáveis a esta equação. Se o intenso baixista,
que, entretanto, se mudou para Alcobaça, é membro dos Moonspell, os jovens
emergentes Edgar Alexandre e Luís Lane – antigos alunos do guitarrista – trazem
sangue novo. Em 2022, o quarteto estava de pé. “Clinic Sessions” acaba por ser
um álbum que tem tanto de inevitável como de inesperado: «Este álbum representa
a inevitabilidade de voltar a gravar em nome próprio», salienta o guitarrista.
Uma década após o último álbum em nome próprio (“Départ”) os seus principais
focos de atenção centravam-se «na sonoridade/instrumentação – toquei guitarra
elétrica e acústica, acompanhado por acordeão, trombone, violoncelo, voz, baixo
e bateria» e também na «intenção de gravar com grandes músicos da nossa praça.»
Antes da decisão de avançar para a gravação de um novo álbum, a sua ideia
inicial passava apenas por «atualizar conteúdos». «Tinha sido convidado a
integrar o catálogo da emergente agência/editora alcobacense, a Suburbia, e
definimos, como fase de arranque, lançar quatro temas novos, em áudio e vídeo,
e fazer uma sessão fotográfica», explica.
Ainda o ano de 2024 mal engatinhava já o quarteto mergulhava
numa residência criativa no emblemático Clinic («uma espécie de Lux em versão
“lite’’», diz Hugo), espaço mítico da noite e cultura alcobacenses - atualmente
propriedade e gerido por Nuno Gonçalves dos The Gift - juntamente com os já
encerrados Bar Ben e Parlatório Café, este apelidado de “Hot Clube do Oeste”.
«Depois do Clinic encerrar, o Nuno comprou o edifício e fez lá a sua casa,
preservando o rés-do-chão como Clinic: a fachada, as portadas, a pista de
dança, o sistema de som e luzes, o balcão, os bancos, etc., tudo se manteve.»
Entrar naquele espaço, fechar as portas, «ficar naquele blackout e isolamento
sonoro e ter apenas as luzes da pista como iluminação, foi como entrar numa
cápsula do tempo e viajar uns vinte anos para trás», refere Hugo Trindade.
Deu-se o clique e foi aí mesmo, na pista de dança, que o quarteto montou o
material para durante quatro dias seguidos, trabalhar intensamente. «Estes dias
foram tão prolíficos e enérgicos que facilmente cumprimos o objetivo inicial de
gravar as tais quatro obras em áudio e vídeo. Inevitavelmente, surgiu em todos
nós a sensação de que toda aquela vivência merecia desaguar num álbum, pois
tinham emergido imensas ideias e esboços musicais», conta. A música do quarteto
é um caldeirão sonoro onde se misturam influências de um certo jazz-rock com
traços funk, drum’n’bass, rock alternativo e algum apelo pop à mistura. «A
minha relação com a música é muito simples: quando ouço algo que me cativa,
independente do estilo musical em que está engavetado, é porque quero de alguma
maneira poder tocar isso ao vivo, a solo ou em grupo. Procuro ter tudo isso
atualizado, inventariado e transcrito», sublinha o guitarrista. O pianista e
teclista Edgar Alexandre, com trabalho na área dos videojogos e do sound
design, corrobora este modus operandi: «Em termos de composição e linguagem
existe realmente uma forte ligação a esses estilos musicais que anda de mãos
dadas com o fato de haver uma procura deste projeto por chegar a um público
mais abrangente.»
Esta estética multirreferencial está desde logo bem patente
nas peças da autoria de Edgar Alexandre que abrem o álbum. “Fuk I” (palavra que
significa “boa sorte” em mandarim) funciona como bom presságio para o álbum e é
um tema luminoso, aberto, com os níveis energéticos em alta; introdução, em
absoluto contraste, para “Fuk II”, que verdadeiramente apresenta o problema,
com as notas límpidas do piano a evoluírem para um balanço soalheiro, do qual
emergem bons solos de piano e guitarra. “Blended” traz uma atmosfera de matriz
floydiana e “Lonnie’s Lament”, emblema coltraneano (um dos primeiros temas do
mestre que Trindade escutou, na versão de Kenny Garrett), surge aqui numa
leitura surpreendente, que transporta a peça, tal como a conhecemos, para um
plano totalmente diferente, com um ritmo agitado drum’n’bass em contraciclo com
o desenvolvimento da melodia pela guitarra processada. “Imaginário”, o tema
original mais antigo do guitarrista, chega com novos momentos de calmaria, próprios
do final de uma tarde de verão. A guitarra muito clean ganha
protagonismo com um bom solo; os teclados fornecem uma espessa camada de base,
soltando-se também em regime solístico. A reexposição do refrão invoca o solo
de Miles Davis em “So What”. De “Gimme a Break”, outra peça saída da pena de
Edgar Alexandre, brota um balanço relaxado nutrido a funk e a rock. “Ravel”,
curioso processamento da passacaglia do piano trio em lá menor do compositor
francês, é uma peça que o guitarrista quis transportar para outro plano
musical, em que a melodia deságua numa seção de solos de travo a rock
progressivo, ainda que a sequência de acordes a aproxime de certo nu-jazz.
Diverso e abrangente, “Clinic Sessions” é um álbum com
potencial para agradar a diferentes públicos.
Faixas
1.01. Fuk I (Edgar Alexandre) 01:54
2.02.
Fuk II (Edgar Alexandre) 04:36
3.03.
Blended (Hugo Trindade) 07:41
4.04.
Lonnie's Lament (John Coltrane) 05:54
5.05. Imaginário (Hugo Trindade) 07:42
6.06. Gimme A Break (Edgar Alexandre) 07:46
7.07. Ravel (Hugo Trindade) 06:28
8.08. Lonnie's Lament – faixa alternativa (John Coltrane)
05:40
Para conhecer um pouco deste trabalho, assistam ao vídeo
abaixo:
https://www.youtube.com/watch?v=o_QF9pPRLHw
Fonte: António Branco (jazz.pt)
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