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sábado, 10 de maio de 2025

LUÍS FIGUEIREDO – ANIMA (Roda Music)

Os mistérios da alma são imperscrutáveis. O que entendemos da alma dos outros é, de fato, o que imaginamos. «Nada sabemos da alma / Senão da nossa; / As dos outros são olhares, / São gestos, são palavras, / Com a suposição de qualquer semelhança / No fundo», escreveu Pessoa em 1934. “Anima”, o novo álbum do pianista, compositor e arranjador Luís Figueiredo (nascido em 1979), obra orquestral dividida em sete andamentos, refere-se à alma, ao espírito e à condição humana em toda a sua complexidade. «Inicialmente, o plano era dedicar um andamento a cada “humor”, a cada estado de espírito ou experiência humana», começa por explicar o músico conimbricense à jazz.pt. «Mas rapidamente percebi que se tornaria demasiado literal. Por isso, preferi explorar várias dessas experiências ao longo dos sete andamentos.» Com selo da Roda Music, editora que cofundou em 2019, “Anima” é o seu álbum mais voltado para a música erudita, pela onipresença da orquestra de cordas, mas sem perder uma natural ligação à linguagem do jazz e à improvisação. Será o seu trabalho mais ambicioso, onde leva mais longe a sua escrita. «O que me agrada precisamente é viajar entre esses vários formatos e explorá-los da forma mais intensa possível.» Para ilustrar esse apelo para a tergiversação entre diferentes áreas musicais, dá o exemplo de um disco de canções inteiramente escritas e tocadas por si e cantadas por Manuel Rocha, a lançar em novembro. «E isso deixa-me tão entusiasmado como o disco de orquestra», sublinha. Em “Anima” há inúmeros traços daquilo que vem fazendo em múltiplos contextos e configurações instrumentais. «Sinto que a linguagem harmônica e rítmica – já não para referir os solistas – denunciam a proximidade do jazz.» Luís Figueiredo admite que “Anima” é apenas mais um disco dentro do seu universo, que sempre teve, entre outros, esses dois polos, a clássica e o jazz. «Sinto-me muito confortável nesta área de confluência, e devo dizer que tenho especial atração por essas áreas “in-between”.» Se no campo clássico assume várias referências, de Mahler a Wagner, passando por Ravel, Stravinsky, Bartók e Arvo Pärt, não esquece Claus Ogerman, Nelson Riddle, Maria Schneider, Guillermo Klein, Jonny Greenwood, Sakamoto ou Alberto Iglesias. Nem Laginha, Sassetti ou Tinoco.

Há nesta obra um fio condutor temático; é uma obra una e coesa, com uma estrutura global bem vincada, da qual emerge uma certa aura mahleriana, particularmente evidente, por exemplo, na “Parte I”. «Em termos técnicos, penso que a herança do pós-romantismo está bem presente num princípio que adotei para todo o álbum, e que é uma espécie de desconstrução ou questionamento do sistema tonal», afirma. Mesmo quando as harmonias são claras e transparentes, despontam elementos harmônicos, melódicos ou rítmicos que interpelam essa transparência e transformam a sensação auditiva. «Desde muito cedo essa outra camada tornou-se essencial para a experiência de compor e ouvir esta música.» Nos últimos anos a aposta de Luís Figueiredo focou-se tanto em contextos mais intimistas – certamente pela liberdade e pelas possibilidades que estes oferecem – seja em “Pranava”, com a cantora Lara Lima, em 2020; a solo em “À Deriva” e num notável dueto com o saxofonista João Mortágua em “Kintsugi” (ambos de 2021); em “This Was What Will Be”, com o harpista Eduardo Raon e o contrabaixista João Hasselberg, ou no disco de estreia do projeto Círculo, que partilha com a cantora Rita Maria e o contrabaixista Mário Franco. Em 2022, cumpriu um desígnio que há muito nutria, o de trabalhar com um grupo alargado de jazz, em especial com a Orquestra Jazz de Matosinhos, daí nascendo o álbum “Se Por Acaso”. No mesmo ano ofereceu-nos também “Mil Pedaços”, com o grupo de percussão Simantra GP, onde revisita um repertório tradicional proveniente de várias regiões do país, de Trás-os-Montes ao Algarve, passando pelas Beiras e pelo Alentejo, entre canções de embalar, romances e canções de trabalho.

Escrita, na sua maior parte, em 2022 e 2023, a música que escutamos em “Anima” é assim uma viagem pela condição humana nos seus múltiplos estados de espírito e emoções. O processo foi longo e atravessou várias fases. Se o primeiro esquiço da abertura data de inícios de 2021, a obra completa foi finalizada já no outono de 2023. Luís Figueiredo não esconde a felicidade pela forma como tudo se desenrolou: «Tudo foi feito com calma», realça. «Fui escrevendo os vários andamentos à medida que tinha tempo para dedicar ao projeto, utilizando ideias que fui registrando ao longo de todo este tempo, e inclusivamente alguns fragmentos que já existiam no meu depósito de ideias por usar.» Dos sete andamentos, dois foram compostos apenas para orquestra de cordas, enquanto os restantes cinco são compostos para solistas que tocam uma combinação de material escrito e improvisado. O objetivo passava por «construir algo que fizesse sentido como um todo, mas que não me deixasse demasiado refém de uma ideia condutora.» Se começou por pensar num estudo de cor para orquestra de cordas, atribuindo e explorando uma cor em cada andamento, logo abandonou o projeto porque se sentiu criativamente preso. «Outro desafio era a própria escrita para orquestra, que eu queria que fosse particularmente expressiva e sólida. E por fim, era preciso encontrar um terreno comum em que orquestra e solistas improvisadores pudessem dialogar de forma significativa», reflete. Trabalhar com a Orquestra Metropolitana de Lisboa, que conhece bem por já ter trabalhado com vários dos seus músicos, sob a direção do maestro Pedro Neves – «músico de enorme competência e generosidade» e que «pensa na música em primeiro lugar» – foi para si uma «experiência extremamente positiva». Ao jeito ellingtoniano, todas as partes foram pensadas para estes solistas em concreto. «É algo que faz parte da minha forma de compor ou conceber música: pensar mais em pessoas específicas do que propriamente em instrumentos.»

Espécie de prelúdio numa suíte barroca, a primeira parte é um imenso manto grave e solene, quase barberiano. A maioria das ideias que encontraremos desenvolvidas ao longo do álbum já aqui estão. A segunda parte reitera a toada melancólica, que o bandoneón de Martín Sued vem temperar com um lirismo mágico que nos liga ao novo tango de Piazzolla. As partes III e VII partilham uma mesma ideia embrionária, que é um ostinato melódico, trabalhada de duas formas distintas, para servir cada uma destas partes. A terceira parte, harmonicamente mais densa, é lançada pelo trompete de Diogo Duque, que lhe confere uma lógica que assentaria como uma luva na banda sonora de um film noir imaginário. De uma serenidade esmagadora, a parte IV, é uma derivação de um dos momentos da parte I, apenas para orquestra, trazendo uma toada minimalista, embora não repetitiva. A parte V é jazzisticamente mais enérgica, com o saxofone soprano de Julian Argüelles a desenhar uma melodia pungente; há também o piano do líder a planar sobre a massa de cordas e a dialogar com o saxofonista. Notas graves lançam uma seção final mais tensa. Na parte VI, de grande amplitude melódica, emerge o piano fluido e delicado de Figueiredo (ainda que com um elemento desestabilizador no início do solo), que se funda numa progressão harmônica repetida, spin-off de uma outra também já presente na parte I, aqui com uma melodia cativante. A parte VII é planante e mais ao jeito de canção. A guitarra etérea do norueguês Eivind Aarset e a intensa envolvente eletrônica aportam o mistério que marca o epílogo da jornada. O final, sereníssimo, contrasta com a turbulência dos dias que correm.

Dando notabilíssima sequência ao labor passado, “Anima” amplia os horizontes de Luís Figueiredo enquanto compositor e reforça o seu lugar entre o escol do jazz nacional.

Faixas

1.Part I 07:16

2.Part II 07:18

3.Part III 05:47

4.Part IV 03:47

5.Part V 04:53

6.Part VI 06:36

7.Part VII 08:09

Músicos: Luís Figueiredo— piano e composição; Diogo Duque— trompete; Eivind Aarset— guitarras e eletrônicas; Julian Argüelles— saxofone soprano; Martín Sued— bandoneón;

Orquestra Metropolitana de Lisboa

Pedro Neves— direção; Ana Pereira, José Pereira, Diana Tzonkova, Joana Dias, Alexei Tolpygo, Ana Filipa Serrão, Inês Marques, Miguel Ferreira, João Martins, Leonor Palha, Ágnes Sárosi, José Teixeira, Daniela Radu, Nonna Manicheva, Anzhela Akopyan, Ana Oliveira, Raquel Cravino e Bernardo Aguiar— violino

Joana Cipriano, Santiago Medina, Diogo Lopes, Andrei Ratnikov, Sérgio Sousa, Joana Tavares e Juliana Lopes— viola

Nuno Abreu, Ana Cláudia Serrão, Jian Hong, Tiago Mirra e Pedro Serra e Silva— violoncelo

Ercole de Conca, Vladimir Kouznetsov e Margarida Ferreira— contrabaixo

Fonte: António Branco (jazz.pt)

 

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