Os mistérios da alma são imperscrutáveis. O que entendemos
da alma dos outros é, de fato, o que imaginamos. «Nada sabemos da alma / Senão
da nossa; / As dos outros são olhares, / São gestos, são palavras, / Com a
suposição de qualquer semelhança / No fundo», escreveu Pessoa em 1934. “Anima”,
o novo álbum do pianista, compositor e arranjador Luís Figueiredo (nascido em
1979), obra orquestral dividida em sete andamentos, refere-se à alma, ao
espírito e à condição humana em toda a sua complexidade. «Inicialmente, o plano
era dedicar um andamento a cada “humor”, a cada estado de espírito ou
experiência humana», começa por explicar o músico conimbricense à jazz.pt. «Mas
rapidamente percebi que se tornaria demasiado literal. Por isso, preferi
explorar várias dessas experiências ao longo dos sete andamentos.» Com selo da
Roda Music, editora que cofundou em 2019, “Anima” é o seu álbum mais voltado
para a música erudita, pela onipresença da orquestra de cordas, mas sem perder
uma natural ligação à linguagem do jazz e à improvisação. Será o seu trabalho
mais ambicioso, onde leva mais longe a sua escrita. «O que me agrada
precisamente é viajar entre esses vários formatos e explorá-los da forma mais
intensa possível.» Para ilustrar esse apelo para a tergiversação entre diferentes
áreas musicais, dá o exemplo de um disco de canções inteiramente escritas e
tocadas por si e cantadas por Manuel Rocha, a lançar em novembro. «E isso
deixa-me tão entusiasmado como o disco de orquestra», sublinha. Em “Anima” há
inúmeros traços daquilo que vem fazendo em múltiplos contextos e configurações
instrumentais. «Sinto que a linguagem harmônica e rítmica – já não para referir
os solistas – denunciam a proximidade do jazz.» Luís Figueiredo admite que
“Anima” é apenas mais um disco dentro do seu universo, que sempre teve, entre
outros, esses dois polos, a clássica e o jazz. «Sinto-me muito confortável
nesta área de confluência, e devo dizer que tenho especial atração por essas
áreas “in-between”.» Se no campo clássico assume várias referências, de Mahler
a Wagner, passando por Ravel, Stravinsky, Bartók e Arvo Pärt, não esquece Claus
Ogerman, Nelson Riddle, Maria Schneider, Guillermo Klein, Jonny Greenwood,
Sakamoto ou Alberto Iglesias. Nem Laginha, Sassetti ou Tinoco.
Há nesta obra um fio condutor temático; é uma obra una e
coesa, com uma estrutura global bem vincada, da qual emerge uma certa aura
mahleriana, particularmente evidente, por exemplo, na “Parte I”. «Em termos
técnicos, penso que a herança do pós-romantismo está bem presente num princípio
que adotei para todo o álbum, e que é uma espécie de desconstrução ou
questionamento do sistema tonal», afirma. Mesmo quando as harmonias são claras
e transparentes, despontam elementos harmônicos, melódicos ou rítmicos que
interpelam essa transparência e transformam a sensação auditiva. «Desde muito
cedo essa outra camada tornou-se essencial para a experiência de compor e ouvir
esta música.» Nos últimos anos a aposta de Luís Figueiredo focou-se tanto em
contextos mais intimistas – certamente pela liberdade e pelas possibilidades
que estes oferecem – seja em “Pranava”, com a cantora Lara Lima, em 2020; a
solo em “À Deriva” e num notável dueto com o saxofonista João Mortágua em
“Kintsugi” (ambos de 2021); em “This Was What Will Be”, com o harpista Eduardo
Raon e o contrabaixista João Hasselberg, ou no disco de estreia do projeto
Círculo, que partilha com a cantora Rita Maria e o contrabaixista Mário Franco.
Em 2022, cumpriu um desígnio que há muito nutria, o de trabalhar com um grupo
alargado de jazz, em especial com a Orquestra Jazz de Matosinhos, daí nascendo
o álbum “Se Por Acaso”. No mesmo ano ofereceu-nos também “Mil Pedaços”, com o
grupo de percussão Simantra GP, onde revisita um repertório tradicional
proveniente de várias regiões do país, de Trás-os-Montes ao Algarve, passando
pelas Beiras e pelo Alentejo, entre canções de embalar, romances e canções de
trabalho.
Escrita, na sua maior parte, em 2022 e 2023, a música que
escutamos em “Anima” é assim uma viagem pela condição humana nos seus múltiplos
estados de espírito e emoções. O processo foi longo e atravessou várias fases.
Se o primeiro esquiço da abertura data de inícios de 2021, a obra completa foi
finalizada já no outono de 2023. Luís Figueiredo não esconde a felicidade pela
forma como tudo se desenrolou: «Tudo foi feito com calma», realça. «Fui
escrevendo os vários andamentos à medida que tinha tempo para dedicar ao
projeto, utilizando ideias que fui registrando ao longo de todo este tempo, e
inclusivamente alguns fragmentos que já existiam no meu depósito de ideias por
usar.» Dos sete andamentos, dois foram compostos apenas para orquestra de
cordas, enquanto os restantes cinco são compostos para solistas que tocam uma
combinação de material escrito e improvisado. O objetivo passava por «construir
algo que fizesse sentido como um todo, mas que não me deixasse demasiado refém
de uma ideia condutora.» Se começou por pensar num estudo de cor para orquestra
de cordas, atribuindo e explorando uma cor em cada andamento, logo abandonou o
projeto porque se sentiu criativamente preso. «Outro desafio era a própria
escrita para orquestra, que eu queria que fosse particularmente expressiva e
sólida. E por fim, era preciso encontrar um terreno comum em que orquestra e
solistas improvisadores pudessem dialogar de forma significativa», reflete.
Trabalhar com a Orquestra Metropolitana de Lisboa, que conhece bem por já ter
trabalhado com vários dos seus músicos, sob a direção do maestro Pedro Neves –
«músico de enorme competência e generosidade» e que «pensa na música em
primeiro lugar» – foi para si uma «experiência extremamente positiva». Ao jeito
ellingtoniano, todas as partes foram pensadas para estes solistas em concreto.
«É algo que faz parte da minha forma de compor ou conceber música: pensar mais
em pessoas específicas do que propriamente em instrumentos.»
Espécie de prelúdio numa suíte barroca, a primeira parte é
um imenso manto grave e solene, quase barberiano. A maioria das ideias que
encontraremos desenvolvidas ao longo do álbum já aqui estão. A segunda parte
reitera a toada melancólica, que o bandoneón de Martín Sued vem temperar com um
lirismo mágico que nos liga ao novo tango de Piazzolla. As partes III e VII
partilham uma mesma ideia embrionária, que é um ostinato melódico, trabalhada
de duas formas distintas, para servir cada uma destas partes. A terceira parte,
harmonicamente mais densa, é lançada pelo trompete de Diogo Duque, que lhe
confere uma lógica que assentaria como uma luva na banda sonora de um film
noir imaginário. De uma serenidade esmagadora, a parte IV, é uma derivação
de um dos momentos da parte I, apenas para orquestra, trazendo uma toada
minimalista, embora não repetitiva. A parte V é jazzisticamente mais enérgica,
com o saxofone soprano de Julian Argüelles a desenhar uma melodia pungente; há
também o piano do líder a planar sobre a massa de cordas e a dialogar com o
saxofonista. Notas graves lançam uma seção final mais tensa. Na parte VI, de
grande amplitude melódica, emerge o piano fluido e delicado de Figueiredo
(ainda que com um elemento desestabilizador no início do solo), que se funda
numa progressão harmônica repetida, spin-off de uma outra também já
presente na parte I, aqui com uma melodia cativante. A parte VII é planante e
mais ao jeito de canção. A guitarra etérea do norueguês Eivind Aarset e a
intensa envolvente eletrônica aportam o mistério que marca o epílogo da
jornada. O final, sereníssimo, contrasta com a turbulência dos dias que correm.
Dando notabilíssima sequência ao labor passado, “Anima”
amplia os horizontes de Luís Figueiredo enquanto compositor e reforça o seu
lugar entre o escol do jazz nacional.
Faixas
1.Part I
07:16
2.Part
II 07:18
3.Part
III 05:47
4.Part
IV 03:47
5.Part V
04:53
6.Part VI 06:36
7.Part VII 08:09
Músicos: Luís Figueiredo— piano e composição; Diogo Duque— trompete; Eivind Aarset— guitarras e eletrônicas; Julian Argüelles— saxofone soprano; Martín Sued— bandoneón;
Orquestra Metropolitana de Lisboa
Pedro Neves— direção; Ana Pereira, José Pereira, Diana
Tzonkova, Joana Dias, Alexei Tolpygo, Ana Filipa Serrão, Inês Marques, Miguel
Ferreira, João Martins, Leonor Palha, Ágnes Sárosi, José Teixeira, Daniela
Radu, Nonna Manicheva, Anzhela Akopyan, Ana Oliveira, Raquel Cravino e Bernardo
Aguiar— violino
Joana Cipriano, Santiago Medina, Diogo Lopes, Andrei Ratnikov,
Sérgio Sousa, Joana Tavares e Juliana Lopes— viola
Nuno Abreu, Ana Cláudia Serrão, Jian Hong, Tiago Mirra e
Pedro Serra e Silva— violoncelo
Ercole de Conca, Vladimir Kouznetsov e Margarida Ferreira—
contrabaixo
Fonte: António Branco (jazz.pt)
Nenhum comentário:
Postar um comentário