Numa era em que tudo se cruza e intersecta, num apertado
dédalo de polinizações artísticas, é sempre bom atestar que o fogo do free
jazz arde intensamente. Hoje há uma linguagem que rompeu com linguagens,
hoje há uma tradição que dinamitou tradições. É neste tabuleiro sônico que se
movimenta o trio formado pelo saxofonista e compositor colombiano Francisco
“Pacho” Dávila e dois portugueses, o contrabaixista Gonçalo Almeida e o
baterista Vasco Furtado. O seu registro de estreia, “Illusions and
Lamentations” tem chancela da lisboeta Phonogram Unit. «É um álbum de free
jazz. Humilde, direto, baseado simplesmente no prazer de criar música em tempo
real e em grupo», começa por confirmar o baterista à jazz.pt. «Não pensámos a
priori na música que íamos gravar.» Essa teia de cumplicidades, não
particularmente longeva, fica bem espelhada na música que fazem em conjunto,
assente muito numa interação natural e próxima e na triangulação de
referências, abordagens e das personalidades distintas que coalescem num
cômputo uno e coeso. «Conheci o Pacho há relativamente pouco tempo e tivemos a
oportunidade de tocar algumas vezes e até gravar uma sessão em duo», revela o
baterista. «Desde logo fiquei impressionado com o seu som no saxofone e com a
sua atitude em relação à música improvisada.» Já a relação musical com o
contrabaixista tem sido vertida numa colaboração regular, nomeadamente no grupo
Multiverse, onde também milita o saxofonista Yedo Gibson, com dois álbuns
editados. Ambos vinham cogitando a possibilidade de trabalhar em trio com
Dávila. A sessão de gravação que culminou em “Illusions and Lamentations”
acabou por resultar de uma coincidência, dada a impossibilidade de outro músico
em participar.
Nome central do jazz colombiano, “Pacho” Dávila move-se em
vários formatos do jazz e da improvisação. Lançou vários álbuns na condição de
líder. “Canto Mestizo”, de 2004, junta-o a alguns dos melhores músicos da cena
de Bogotá, desenvolvendo composições e improvisando de forma a integrar uma linguagem
livre e elementos rítmicos e melódicos do folclore daquele país sul-americano.
Do seu percurso destacam-se álbuns como “The Power Is Now” (2008), gravado em
Nova Iorque, cada vez mais embrenhado na exploração da improvisação e do free
jazz, “Pendulum” (2009), “Dissonant Reality” (2011) e “Chinese Souvenir”
(2012), editado em Colônia, Alemanha. É neste país, onde hoje reside, que tem
desenvolvido a sua atividade mais recente, nomeadamente em colaborações com
Rieko Okuda, Israel Flores Bravo, Andreas Wagner ou Luca Müller, e integrando
formações alargadas como a Wuppertal Improvising Orchestra e o coletivo
berlinense Invisible Fire. A partir de Roterdão, cidade onde se radicou há
vários anos, o contrabaixista Gonçalo Almeida tem desenvolvido uma atividade
frenética em diferentes contextos e formações como The Selva (regressar a
“Camarão-Girafa” é inescapável), Albatre, Ritual Habitual, Spinifex, Lama, The
Monkious e Sonitus Missarum. Nos últimos anos, para além de cinco álbuns a
solo, editou em dueto com o também contrabaixista Peter Jacquemyn
(“Encounters”, 2023) e com o organista Bart van Dongen (“Sub Aere”, 2024).
Também em 2024 editou “States of Restraint”, com Susana Santos Silva no
trompete e Gustavo Costa na percussão. Baterista de vastos recursos e
movimentos amplos, Vasco Furtado tem-se dedicado principalmente ao jazz mais
livre e à música improvisada conexa, em várias formações, sobretudo desde que
em 2015 se fixou em Colônia. Tem colaborado com músicos como Albert Cirera e
Luís Lopes, entre muitos outros, e gravado álbuns como “Vento”, com o
saxofonista José Lencastre e o contrabaixista Hernâni Faustino, “Aforismos”,
com a vibrafonista Salome Amend e a saxofonista Luise Volkmann, e no trio com
João Almeida (trompete) e Rodrigo Pinheiro (piano), que em 2023 editou o álbum
“Linae” e sua sequência ao vivo na SMUP (“Continuum”, 2024).
Os títulos do álbum e das peças que o integram – todas
completamente improvisadas – aludem a um amplo espectro emocional, entre a
“ilusão” e a “lamentação” – passando por “resolução”, “expectativa”,
“contradição”, “confrontação”. «Vivemos entre a ilusão e a lamentação, tendo
por vezes momentos de sobriedade», diz Furtado. «Foi o Pacho que escolheu o
nome. Perguntei-lhe e respondeu: “É um reflexo da nossa sociedade atual. Esta
música vem do nada, é uma música telepática. É cura libertária porque convida a
tirar a algema do pé e voar. Embora seja uma música forte é ao mesmo tempo
frágil.”» Parece existir um denominador comum, qual fio de Ariadne a guiar a
construção temática do álbum, apesar de as peças só terem sido intituladas após
as fases de gravação e mistura. «Não é mais do que um estado de espírito do dia
da sessão de gravação», explica Vasco Furtado. Tudo funciona como uma só peça
com subdivisões (ou subemoções), ideia corroborada por Gonçalo Almeida: «Essa
abordagem sugere que cada música, apesar de ser uma subdivisão, carrega uma
parte da essência do todo, criando uma narrativa coesa e emocionalmente
ressonante ao longo do álbum.» «Essa prática não só reflete a experiência do
processo criativo, mas também intensifica a ligação do ouvinte com a obra como
um todo», acrescenta o contrabaixista. A opção estilística é prosseguida num
formato “clássico” particularmente adequado, o de trio
saxofone-contrabaixo-bateria, configuração que permite intimidade e ao mesmo
tempo liberdade, em que existe espaço para o saxofone e a dupla rítmica se
entrelaçarem em interações dinâmicas e espontâneas. «É um formato muito direto,
muito terra», diz Furtado. Para Almeida, «resulta numa experiência auditiva
rica e multifacetada que desafia as expectativas e convida à exploração musical.»
A auroral “Illusion” é uma conversa a três, com os
instrumentos a interagirem em pé de igualdade. Dávila gere exemplarmente um tom
mais incendiário com passagens mais respiradas. À medida que evolui, a peça
ganha corpo. Em “Delusion”, nos seus mais de quinze minutos de duração (é a
mais extensa do álbum), surge o sopro mágico do colombiano, a que se junta o
contrabaixo, com Almeida ora a recorrer ao arco ora a solar magnificamente em
pizzicato, e a bateria recatada, sempre prenhe de pormenores. A peça
desenvolve-se sutilmente, a espaços mais nervosos. Contrabaixo e bateria
entregam-se a uma notabilíssima secção em duo, num crescendo de intensidade. As
triangulações frutíferas regressam em “Resolution” – com um Dávila
multirreferencial – aqui, num registo mais ligado à tradição do jazz (subjaz um
swing esdrúxulo), embora sempre numa perspectiva clara de interpelação e
avanço. “Expectation” assume contornos mais espirituais (para os quais Furtado
contribui sobremaneira com os seus polirritmos ritualísticos); Dávlla discursa
com altivez e segurança, sempre consequente, a que os outros dois respondem com
um tapete rítmico burilado. A certo momento tudo se aquieta e a peça esvai-se.
“Contradiction” retoma um free jazz solto e desempoeirado (com uma telegráfica
citação a “Frère Jacques”?), com Dávila a voar e a dupla rítmica em interinfluências
e solos de valia. O saxofonista encerra a peça desenhando uma bela melodia.
“Confrontation” é rugosa, com o sul-americano a assumir um registro mais
“gritado” e pujante. Almeida e Furtado, contradizem e rematam no limiar do
silêncio. “Lamentation” é introduzida pelo contrabaixo de novo com recurso ao
arco, até entrar um saxofone pronto a com ele dialogar. O trio completa-se e
parte para mais uma jornada de interação sem rede. Dávila opta aqui pelo
soprano (um Coltrane final vem logo à mente), deambulando com viço e propósito,
mas também não descurando a melodia. Emerge outro belo solo de Furtado; Almeida
volta a recorrer ao arco e os dois guiam a peça ao seu estertor.
Combinando intensidade e fragilidade, Dávila, Almeida e
Furtado fazem de “Illusions and Lamentations” mais um atestado da vitalidade do
free, que sim, é também a música de um presente a escaldar.
Faixas
1.Illusion
06:00
2.Delusion
15:43
3.Resolution
05:25
4.Expectation
11:21
5.Contradiction 08:50
6.Confrontation 05:12
7.Lamentation 11:10
Músicos: Pacho Dávila— saxofones tenor e soprano; Gonçalo Almeida— contrabaixo; Vasco Furtado— bateria
Fonte: António Branco (jazz.pt)
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