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sábado, 31 de maio de 2025

PACHO DÁVILA / GONÇALO ALMEIDA / VASCO FURTADO -ILUSIONS AND LAMENTATIONS (Phonogram Unit)

Numa era em que tudo se cruza e intersecta, num apertado dédalo de polinizações artísticas, é sempre bom atestar que o fogo do free jazz arde intensamente. Hoje há uma linguagem que rompeu com linguagens, hoje há uma tradição que dinamitou tradições. É neste tabuleiro sônico que se movimenta o trio formado pelo saxofonista e compositor colombiano Francisco “Pacho” Dávila e dois portugueses, o contrabaixista Gonçalo Almeida e o baterista Vasco Furtado. O seu registro de estreia, “Illusions and Lamentations” tem chancela da lisboeta Phonogram Unit. «É um álbum de free jazz. Humilde, direto, baseado simplesmente no prazer de criar música em tempo real e em grupo», começa por confirmar o baterista à jazz.pt. «Não pensámos a priori na música que íamos gravar.» Essa teia de cumplicidades, não particularmente longeva, fica bem espelhada na música que fazem em conjunto, assente muito numa interação natural e próxima e na triangulação de referências, abordagens e das personalidades distintas que coalescem num cômputo uno e coeso. «Conheci o Pacho há relativamente pouco tempo e tivemos a oportunidade de tocar algumas vezes e até gravar uma sessão em duo», revela o baterista. «Desde logo fiquei impressionado com o seu som no saxofone e com a sua atitude em relação à música improvisada.» Já a relação musical com o contrabaixista tem sido vertida numa colaboração regular, nomeadamente no grupo Multiverse, onde também milita o saxofonista Yedo Gibson, com dois álbuns editados. Ambos vinham cogitando a possibilidade de trabalhar em trio com Dávila. A sessão de gravação que culminou em “Illusions and Lamentations” acabou por resultar de uma coincidência, dada a impossibilidade de outro músico em participar.

Nome central do jazz colombiano, “Pacho” Dávila move-se em vários formatos do jazz e da improvisação. Lançou vários álbuns na condição de líder. “Canto Mestizo”, de 2004, junta-o a alguns dos melhores músicos da cena de Bogotá, desenvolvendo composições e improvisando de forma a integrar uma linguagem livre e elementos rítmicos e melódicos do folclore daquele país sul-americano. Do seu percurso destacam-se álbuns como “The Power Is Now” (2008), gravado em Nova Iorque, cada vez mais embrenhado na exploração da improvisação e do free jazz, “Pendulum” (2009), “Dissonant Reality” (2011) e “Chinese Souvenir” (2012), editado em Colônia, Alemanha. É neste país, onde hoje reside, que tem desenvolvido a sua atividade mais recente, nomeadamente em colaborações com Rieko Okuda, Israel Flores Bravo, Andreas Wagner ou Luca Müller, e integrando formações alargadas como a Wuppertal Improvising Orchestra e o coletivo berlinense Invisible Fire. A partir de Roterdão, cidade onde se radicou há vários anos, o contrabaixista Gonçalo Almeida tem desenvolvido uma atividade frenética em diferentes contextos e formações como The Selva (regressar a “Camarão-Girafa” é inescapável), Albatre, Ritual Habitual, Spinifex, Lama, The Monkious e Sonitus Missarum. Nos últimos anos, para além de cinco álbuns a solo, editou em dueto com o também contrabaixista Peter Jacquemyn (“Encounters”, 2023) e com o organista Bart van Dongen (“Sub Aere”, 2024). Também em 2024 editou “States of Restraint”, com Susana Santos Silva no trompete e Gustavo Costa na percussão. Baterista de vastos recursos e movimentos amplos, Vasco Furtado tem-se dedicado principalmente ao jazz mais livre e à música improvisada conexa, em várias formações, sobretudo desde que em 2015 se fixou em Colônia. Tem colaborado com músicos como Albert Cirera e Luís Lopes, entre muitos outros, e gravado álbuns como “Vento”, com o saxofonista José Lencastre e o contrabaixista Hernâni Faustino, “Aforismos”, com a vibrafonista Salome Amend e a saxofonista Luise Volkmann, e no trio com João Almeida (trompete) e Rodrigo Pinheiro (piano), que em 2023 editou o álbum “Linae” e sua sequência ao vivo na SMUP (“Continuum”, 2024).

Os títulos do álbum e das peças que o integram – todas completamente improvisadas – aludem a um amplo espectro emocional, entre a “ilusão” e a “lamentação” – passando por “resolução”, “expectativa”, “contradição”, “confrontação”. «Vivemos entre a ilusão e a lamentação, tendo por vezes momentos de sobriedade», diz Furtado. «Foi o Pacho que escolheu o nome. Perguntei-lhe e respondeu: “É um reflexo da nossa sociedade atual. Esta música vem do nada, é uma música telepática. É cura libertária porque convida a tirar a algema do pé e voar. Embora seja uma música forte é ao mesmo tempo frágil.”» Parece existir um denominador comum, qual fio de Ariadne a guiar a construção temática do álbum, apesar de as peças só terem sido intituladas após as fases de gravação e mistura. «Não é mais do que um estado de espírito do dia da sessão de gravação», explica Vasco Furtado. Tudo funciona como uma só peça com subdivisões (ou subemoções), ideia corroborada por Gonçalo Almeida: «Essa abordagem sugere que cada música, apesar de ser uma subdivisão, carrega uma parte da essência do todo, criando uma narrativa coesa e emocionalmente ressonante ao longo do álbum.» «Essa prática não só reflete a experiência do processo criativo, mas também intensifica a ligação do ouvinte com a obra como um todo», acrescenta o contrabaixista. A opção estilística é prosseguida num formato “clássico” particularmente adequado, o de trio saxofone-contrabaixo-bateria, configuração que permite intimidade e ao mesmo tempo liberdade, em que existe espaço para o saxofone e a dupla rítmica se entrelaçarem em interações dinâmicas e espontâneas. «É um formato muito direto, muito terra», diz Furtado. Para Almeida, «resulta numa experiência auditiva rica e multifacetada que desafia as expectativas e convida à exploração musical.»

A auroral “Illusion” é uma conversa a três, com os instrumentos a interagirem em pé de igualdade. Dávila gere exemplarmente um tom mais incendiário com passagens mais respiradas. À medida que evolui, a peça ganha corpo. Em “Delusion”, nos seus mais de quinze minutos de duração (é a mais extensa do álbum), surge o sopro mágico do colombiano, a que se junta o contrabaixo, com Almeida ora a recorrer ao arco ora a solar magnificamente em pizzicato, e a bateria recatada, sempre prenhe de pormenores. A peça desenvolve-se sutilmente, a espaços mais nervosos. Contrabaixo e bateria entregam-se a uma notabilíssima secção em duo, num crescendo de intensidade. As triangulações frutíferas regressam em “Resolution” – com um Dávila multirreferencial – aqui, num registo mais ligado à tradição do jazz (subjaz um swing esdrúxulo), embora sempre numa perspectiva clara de interpelação e avanço. “Expectation” assume contornos mais espirituais (para os quais Furtado contribui sobremaneira com os seus polirritmos ritualísticos); Dávlla discursa com altivez e segurança, sempre consequente, a que os outros dois respondem com um tapete rítmico burilado. A certo momento tudo se aquieta e a peça esvai-se. “Contradiction” retoma um free jazz solto e desempoeirado (com uma telegráfica citação a “Frère Jacques”?), com Dávila a voar e a dupla rítmica em interinfluências e solos de valia. O saxofonista encerra a peça desenhando uma bela melodia. “Confrontation” é rugosa, com o sul-americano a assumir um registro mais “gritado” e pujante. Almeida e Furtado, contradizem e rematam no limiar do silêncio. “Lamentation” é introduzida pelo contrabaixo de novo com recurso ao arco, até entrar um saxofone pronto a com ele dialogar. O trio completa-se e parte para mais uma jornada de interação sem rede. Dávila opta aqui pelo soprano (um Coltrane final vem logo à mente), deambulando com viço e propósito, mas também não descurando a melodia. Emerge outro belo solo de Furtado; Almeida volta a recorrer ao arco e os dois guiam a peça ao seu estertor.

Combinando intensidade e fragilidade, Dávila, Almeida e Furtado fazem de “Illusions and Lamentations” mais um atestado da vitalidade do free, que sim, é também a música de um presente a escaldar.

Faixas

1.Illusion 06:00

2.Delusion 15:43

3.Resolution 05:25

4.Expectation 11:21

5.Contradiction 08:50

6.Confrontation 05:12

7.Lamentation 11:10

Músicos: Pacho Dávila— saxofones tenor e soprano; Gonçalo Almeida— contrabaixo; Vasco Furtado— bateria

Fonte: António Branco (jazz.pt)

 

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