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sexta-feira, 20 de junho de 2025

RAN BLAKE / DAVE KNIFE FABRIS - LIVE AMSTERDAM 2006 FIRST VISIT

Dave Fabris teve a sua primeira aula com Ran Blake (nascido em 1935) nos idos de 1987, no prestigiado New England Conservatory of Music, em Boston. Foi então que o pianista, compositor e pedagogo, com uma carreira que hoje abrange quase seis décadas, alcunhou o guitarrista de “Knife”, depois de este ter tocado guitarra com uma faca. «Ran foi tão encorajador para os meus gostos ecléticos e estilo de tocar que comecei a estudar em privado com ele», explica Dave Fabris à jazz.pt. «A melhor coisa sobre Ran como professor e amigo é o nível de respeito que ele mostra, mesmo para um jovem músico que precisa de muito trabalho», conta. «Ele validou as minhas várias influências e eu vou sempre atribuir-lhe o mérito de ter ajudado a descobrir a minha voz como músico». “Live Amsterdam 2006” foi registrado em abril de 2024 no BIMhuis, no arranque da sua terceira digressão internacional conjunta, e tem chancela da First Visit, editora associada à prestigiada HatHut/Ezz-Thetic de Werner Uehlinger e dedicada a registros históricos. Na noite anterior celebraram o aniversário de Blake, que pôde reencontrar uma sobrinha que reside nos Países Baixos. Quando se preparavam para sair, os responsáveis da sala entregaram-lhes uma gravação do concerto, que guardaram durante o resto da digressão. Foi preciso esperar década e meia para que em 2020, em pleno período pandêmico, Knife encontrasse a gravação e se apercebesse de que era a melhor que alguma vez haviam captado em duo. Na primeira parte do concerto escutamos Blake a solo e na segunda o duo mostra os altos níveis de interação que estabelecem, terminando os pensamentos um do outro e criando uma conversa mágica. «Este concerto foi a primeira data de uma rápida digressão de primavera em 2006. Como road manager, passei grande parte dos meus dias em digressão a cuidar das necessidades de Ran, mas o pessoal do BIMhuis tratou de tudo por nós, por isso pude concentrar-me na música para este concerto», recorda Fabris. «Quando me apercebi da qualidade da atuação, tive de tentar que fosse produzida e editada, felizmente, o Werner estava interessado». Na altura desta gravação, Fabris tinha estudado com Ran Blake durante 13 anos e colaborado durante mais sete depois disso, por isso conheciam particularmente bem a forma de tocar um do outro. «Há momentos durante os nossos duos nesta gravação em que parece que tudo é composto, mas estávamos realmente a improvisar». Ao longo da sua carreira longeva, Ran Blake desenvolveu um nicho único. Tal como Don Byron, Matthew Shipp, John Medeski e Dominique Eade, também a cantora e compositora portuguesa Sara Serpa foi sua discípula, tendo gravado com o mentor álbuns como “Camera Obscura” (Nischo, 2010) e “Aurora” (Clean Feed, 2012).

Com uma abordagem para a qual confluem referências da tradição clássica, a carga telúrica dos blues, a espiritualidade do gospel ou a atmosfera dos film noir, a idiossincrasia sônica de Ran Blake tem atraído muitos, músicos e público, ao longo dos anos. O seu legado está vertido em quase meia centena de álbuns. Muito antes da invenção da realidade virtual, Blake começou a colocar-se mentalmente dentro dos filmes e cenários da vida real que inspiraram as suas composições originais. A influência da música das igrejas pentecostais, que descobriu quando era adolescente e crescia em Suffield, Connecticut, combinada com a sua imersão musical naquilo a que o próprio chama de «um mundo Film Noir», lançou as bases para o seu universo musical. Esse estilo inicial evoluiria quando com a sua colega estudante do Bard College e vocalista Jeanne Lee criam um duo no final da década de 1950. A parceria levou à gravação de “The Newest Sound Around”, em 1962, dando a conhecer ao mundo os seus talentos únicos e a abordagem revolucionária aos standards. Esta gravação foi supervisionada informalmente pelo seu próprio mentor, Gunther Schuller, figura maior da chamada “Third Stream” (expressão que o próprio cunhou) – corrente que procurava aliar o rigor das formas clássicas com a espontaneidade e a urgência do jazz –, alguém que rapidamente percebeu o potencial de Blake. Foi por intervenção de Schuller que Blake estudou na Lenox School of Jazz nos verões de 1959 e 1960, onde privou com John Lewis, Oscar Peterson, Bill Russo e muitos outros. Estudou também em Nova Iorque com Mary Lou Williams e Mal Waldron. Durante esses anos, tornou-se próximo de Thelonious Monk e da sua família. Monk continua a ser o seu pianista preferido. A abordagem ao ensino enfatiza o que chama de «a primazia do ouvido», descrita em pormenor no seu livro de 2010 com o mesmo título, onde defende a elevação do processo de audição ao mesmo estatuto da partitura escrita. Esta apetência pelo risco e uma enorme atenção ao pormenor, num estilo fluido e por vezes desconcertante, juntamente com a amplitude e o simbolismo pessoal do seu repertório, faz luz sobre a razão pela qual Blake teve poucos, mas especiais, colaboradores ao longo da sua carreira – e nenhum durante tanto tempo como Dave Fabris. Há que enaltecer o papel aqui desempenhado pelo guitarrista, que não se limita a acompanhar o mestre. O que Fabris aporta requer uma interação no domínio do telepático e uma técnica versátil, capaz de se adaptar aos caminhos trilhados pelo veterano pianista, trazendo melodias paralelas, injetando contributos, vincando ou contrastando atmosferas.

O álbum abre com “Vladiazi”, do grego Mikis Theodorakis, que logo nos emerge no pianismo mercurial de Blake, dos acordes mais afiados à mais bela das melodias num piscar de olhos. “This Will All Seem Funny” (de Steve Mardon, antigo aluno, mais um exemplo do respeito e apoio de Blake a músicos inexperientes) é uma espécie de hino que nos é apresentado e logo desconstruído. “Collaboration”, de Pete Rugolo, exibe uma melodia esquiva e que não se deixa domar. Blake junta “Drop Me Off in Harlem” (de Duke Ellington) a “Night and Day” e dá-nos um lampejo de como Blake entende a “tradição”, manancial vasto e disponível para interpelações. O velho clássico de Cole Porter surge significativamente transfigurado, ainda que a melodia-base esteja lá, gloriosa como sempre. Na telegráfica “Hornin’n In”, de Monk, as notas tonitruantes alternam com belas passagens (Surpreende que não tenham tocado mais Monk, mas a razão logo chega: «dois dias depois desta gravação, iríamos a Antuérpia para um festival Monk, onde conhecemos Johnny Griffin», recorda Dave Fabris). “All That is Tied” (de Jonah Kraut, outro discípulo) é lenta e sussurrante e “Throw It Away”, de Abbey Lincoln, navega em águas não muito distantes. “Paris”, original de Blake, evoca a beleza noturna e o mistério insondável da capital francesa. O clássico “Bye Bye Blackbird”, de Ray Henderson e Mort Dixon – gravado pela primeira vez pela orquestra de dança de Sam Lanin em março de 1926 – é explorado até às entranhas (foi o bis deste concerto, pelo que é perfeitamente audível o ruído dos presentes a tentarem regressar aos seus lugares). “Machito” (mais uma de Rugolo/Kenton) surge acoplada ao inesperado “Jammin” (de Stevie Wonder) – (Fabris conta que Blake estava a dar aulas a um aluno que adorava reggae, por isso pensou como seria dar a essa canção uma batida de reggae) – trazendo o guitarrista para a equação em modo relaxado. “Vilna” é curta balada de contornos esdrúxulos. Fabris, desacompanhado, evoca de modo delicado a ambiência sinistra de “North by Northwest”, clássico de Bernard Herrmann para Alfred Hitchcock. “Nightcrawler”, original de Fabris, é um blues que potencializa o diálogo entre pianista e guitarrista, em regime cúmplice, que prossegue na leitura frenética  de “Soulville”, de Horace Silver. “Sadness” (gravada por ambos, tal como “The Spiral Staircase” e “Merci Bom Dieu” no álbum “Indian Winter”, de 2005), é abordado em articulação com “Space Church” (duas peças de Ornette Coleman); uma guitarra elétrica multímoda contrasta com as notas esparsas do piano, num desafio permanente. Seminal para a sua evolução futura como compositor “The Spiral Staircase”, de Roy Webb (banda sonora do filme de 1946 de Robert Siodmak), serve uma benfazeja dose de dinamismo e agitação, com uma inusitada troca de papéis (linha de baixo versus acordes), exemplo perfeito dos níveis de cumplicidade logrados por Blake e Fabris. Uma bela transfiguração do segundo andamento da Sinfonia n.º 9 de Dmitri Shostakovich, encerra a jornada. De Ran Blake disse Jason Moran recentemente:  «Ran é diferente de tudo o que existe. Espero que os músicos o ouçam e se perguntem: “Não deveríamos estar a correr mais riscos?”». Em tempos de asfixia normalizadora, o que continua a fazer é oxigênio.

Faixas

1.Vladiazi 03:56

2.This Will All Seem Funny 00:55

3.Collaboration 02:31

4.Drop Me Off in Harlem/ Night and Day 05:45

5.Merci Bon Dieu 02:31

6.Hornin’ In 01:12

7.All That is Tied 04:18

8.Throw it Away 02:11

9.Paris 02:44

10.Bye Bye Blackbird 02:13

11.Machito/Jammin’ 04:32

12.Vilna 02:27

13.North By Northwest 03:40

14.Nightcrawler 02:15

15.Soulville 04:05

16.Sadness/Space Church 05:31

17.Spiral Staircase 01:33

18.Symphony No. 9 Second Movement (D. Shostakovich) 04:23

 Músicos: Ran Blake (piano); Dave Knife Fabris (guitarra elétrica [faixas 11-18]).

Fonte: António Branco (jazz.pt)

 

 

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