Dave Fabris teve a sua primeira aula com Ran Blake (nascido
em 1935) nos idos de 1987, no prestigiado New England Conservatory of Music, em
Boston. Foi então que o pianista, compositor e pedagogo, com uma carreira que
hoje abrange quase seis décadas, alcunhou o guitarrista de “Knife”, depois de
este ter tocado guitarra com uma faca. «Ran foi tão encorajador para os meus
gostos ecléticos e estilo de tocar que comecei a estudar em privado com ele»,
explica Dave Fabris à jazz.pt. «A melhor coisa sobre Ran como professor e amigo
é o nível de respeito que ele mostra, mesmo para um jovem músico que precisa de
muito trabalho», conta. «Ele validou as minhas várias influências e eu vou
sempre atribuir-lhe o mérito de ter ajudado a descobrir a minha voz como músico».
“Live Amsterdam 2006” foi registrado em abril de 2024 no BIMhuis, no arranque
da sua terceira digressão internacional conjunta, e tem chancela da First
Visit, editora associada à prestigiada HatHut/Ezz-Thetic de Werner Uehlinger e
dedicada a registros históricos. Na noite anterior celebraram o aniversário de
Blake, que pôde reencontrar uma sobrinha que reside nos Países Baixos. Quando
se preparavam para sair, os responsáveis da sala entregaram-lhes uma gravação
do concerto, que guardaram durante o resto da digressão. Foi preciso esperar
década e meia para que em 2020, em pleno período pandêmico, Knife encontrasse a
gravação e se apercebesse de que era a melhor que alguma vez haviam captado em
duo. Na primeira parte do concerto escutamos Blake a solo e na segunda o duo
mostra os altos níveis de interação que estabelecem, terminando os pensamentos
um do outro e criando uma conversa mágica. «Este concerto foi a primeira data
de uma rápida digressão de primavera em 2006. Como road manager, passei
grande parte dos meus dias em digressão a cuidar das necessidades de Ran, mas o
pessoal do BIMhuis tratou de tudo por nós, por isso pude concentrar-me na
música para este concerto», recorda Fabris. «Quando me apercebi da qualidade da
atuação, tive de tentar que fosse produzida e editada, felizmente, o Werner
estava interessado». Na altura desta gravação, Fabris tinha estudado com Ran
Blake durante 13 anos e colaborado durante mais sete depois disso, por isso
conheciam particularmente bem a forma de tocar um do outro. «Há momentos
durante os nossos duos nesta gravação em que parece que tudo é composto, mas
estávamos realmente a improvisar». Ao longo da sua carreira longeva, Ran Blake
desenvolveu um nicho único. Tal como Don Byron, Matthew Shipp, John Medeski e
Dominique Eade, também a cantora e compositora portuguesa Sara Serpa foi sua
discípula, tendo gravado com o mentor álbuns como “Camera Obscura” (Nischo,
2010) e “Aurora” (Clean Feed, 2012).
Com uma abordagem para a qual confluem referências da
tradição clássica, a carga telúrica dos blues, a espiritualidade do gospel ou a
atmosfera dos film noir, a idiossincrasia sônica de Ran Blake tem
atraído muitos, músicos e público, ao longo dos anos. O seu legado está vertido
em quase meia centena de álbuns. Muito antes da invenção da realidade virtual,
Blake começou a colocar-se mentalmente dentro dos filmes e cenários da vida real
que inspiraram as suas composições originais. A influência da música das
igrejas pentecostais, que descobriu quando era adolescente e crescia em
Suffield, Connecticut, combinada com a sua imersão musical naquilo a que o
próprio chama de «um mundo Film Noir», lançou as bases para o seu
universo musical. Esse estilo inicial evoluiria quando com a sua colega
estudante do Bard College e vocalista Jeanne Lee criam um duo no final da
década de 1950. A parceria levou à gravação de “The Newest Sound Around”, em 1962,
dando a conhecer ao mundo os seus talentos únicos e a abordagem revolucionária
aos standards. Esta gravação foi supervisionada informalmente pelo seu
próprio mentor, Gunther Schuller, figura maior da chamada “Third Stream”
(expressão que o próprio cunhou) – corrente que procurava aliar o rigor das
formas clássicas com a espontaneidade e a urgência do jazz –, alguém que
rapidamente percebeu o potencial de Blake. Foi por intervenção de Schuller que
Blake estudou na Lenox School of Jazz nos verões de 1959 e 1960, onde privou
com John Lewis, Oscar Peterson, Bill Russo e muitos outros. Estudou também em
Nova Iorque com Mary Lou Williams e Mal Waldron. Durante esses anos, tornou-se
próximo de Thelonious Monk e da sua família. Monk continua a ser o seu pianista
preferido. A abordagem ao ensino enfatiza o que chama de «a primazia do
ouvido», descrita em pormenor no seu livro de 2010 com o mesmo título, onde
defende a elevação do processo de audição ao mesmo estatuto da partitura
escrita. Esta apetência pelo risco e uma enorme atenção ao pormenor, num estilo
fluido e por vezes desconcertante, juntamente com a amplitude e o simbolismo
pessoal do seu repertório, faz luz sobre a razão pela qual Blake teve poucos,
mas especiais, colaboradores ao longo da sua carreira – e nenhum durante tanto
tempo como Dave Fabris. Há que enaltecer o papel aqui desempenhado pelo
guitarrista, que não se limita a acompanhar o mestre. O que Fabris aporta
requer uma interação no domínio do telepático e uma técnica versátil, capaz de
se adaptar aos caminhos trilhados pelo veterano pianista, trazendo melodias
paralelas, injetando contributos, vincando ou contrastando atmosferas.
O álbum abre com “Vladiazi”, do grego Mikis Theodorakis, que
logo nos emerge no pianismo mercurial de Blake, dos acordes mais afiados à mais
bela das melodias num piscar de olhos. “This Will All Seem Funny” (de Steve
Mardon, antigo aluno, mais um exemplo do respeito e apoio de Blake a músicos
inexperientes) é uma espécie de hino que nos é apresentado e logo desconstruído.
“Collaboration”, de Pete Rugolo, exibe uma melodia esquiva e que não se deixa
domar. Blake junta “Drop Me Off in Harlem” (de Duke Ellington) a “Night and
Day” e dá-nos um lampejo de como Blake entende a “tradição”, manancial vasto e
disponível para interpelações. O velho clássico de Cole Porter surge
significativamente transfigurado, ainda que a melodia-base esteja lá, gloriosa
como sempre. Na telegráfica “Hornin’n In”, de Monk, as notas tonitruantes
alternam com belas passagens (Surpreende que não tenham tocado mais Monk, mas a
razão logo chega: «dois dias depois desta gravação, iríamos a Antuérpia para um
festival Monk, onde conhecemos Johnny Griffin», recorda Dave Fabris). “All That
is Tied” (de Jonah Kraut, outro discípulo) é lenta e sussurrante e “Throw It
Away”, de Abbey Lincoln, navega em águas não muito distantes. “Paris”, original
de Blake, evoca a beleza noturna e o mistério insondável da capital francesa. O
clássico “Bye Bye Blackbird”, de Ray Henderson e Mort Dixon – gravado pela
primeira vez pela orquestra de dança de Sam Lanin em março de 1926 – é
explorado até às entranhas (foi o bis deste concerto, pelo que é perfeitamente
audível o ruído dos presentes a tentarem regressar aos seus lugares). “Machito”
(mais uma de Rugolo/Kenton) surge acoplada ao inesperado “Jammin” (de Stevie
Wonder) – (Fabris conta que Blake estava a dar aulas a um aluno que adorava
reggae, por isso pensou como seria dar a essa canção uma batida de reggae) –
trazendo o guitarrista para a equação em modo relaxado. “Vilna” é curta balada
de contornos esdrúxulos. Fabris, desacompanhado, evoca de modo delicado a
ambiência sinistra de “North by Northwest”, clássico de Bernard Herrmann para
Alfred Hitchcock. “Nightcrawler”, original de Fabris, é um blues que potencializa
o diálogo entre pianista e guitarrista, em regime cúmplice, que prossegue na
leitura frenética de “Soulville”, de
Horace Silver. “Sadness” (gravada por ambos, tal como “The Spiral Staircase” e
“Merci Bom Dieu” no álbum “Indian Winter”, de 2005), é abordado em articulação
com “Space Church” (duas peças de Ornette Coleman); uma guitarra elétrica
multímoda contrasta com as notas esparsas do piano, num desafio permanente.
Seminal para a sua evolução futura como compositor “The Spiral Staircase”, de
Roy Webb (banda sonora do filme de 1946 de Robert Siodmak), serve uma benfazeja
dose de dinamismo e agitação, com uma inusitada troca de papéis (linha de baixo
versus acordes), exemplo perfeito dos níveis de cumplicidade logrados por Blake
e Fabris. Uma bela transfiguração do segundo andamento da Sinfonia n.º 9 de
Dmitri Shostakovich, encerra a jornada. De Ran Blake disse Jason Moran
recentemente: «Ran é diferente de tudo o
que existe. Espero que os músicos o ouçam e se perguntem: “Não deveríamos estar
a correr mais riscos?”». Em tempos de asfixia normalizadora, o que continua a
fazer é oxigênio.
Faixas
1.Vladiazi
03:56
2.This
Will All Seem Funny 00:55
3.Collaboration
02:31
4.Drop
Me Off in Harlem/ Night and Day 05:45
5.Merci
Bon Dieu 02:31
6.Hornin’
In 01:12
7.All
That is Tied 04:18
8.Throw
it Away 02:11
9.Paris
02:44
10.Bye
Bye Blackbird 02:13
11.Machito/Jammin’
04:32
12.Vilna
02:27
13.North
By Northwest 03:40
14.Nightcrawler
02:15
15.Soulville
04:05
16.Sadness/Space
Church 05:31
17.Spiral
Staircase 01:33
18.Symphony
No. 9 Second Movement (D. Shostakovich) 04:23
Músicos: Ran Blake (piano); Dave Knife Fabris (guitarra elétrica [faixas 11-18]).
Fonte: António Branco (jazz.pt)
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