Logo depois segue-se um solo de contrabaixo e, seguidamente,
um trio onde as formas se tornam mais fluídas, menos definidas. Quando
alcançamos "Sulida", o quarto tema, a secção rítmica mergulha num
vasto léxico sonoro: do caos textural às densas camadas harmônicas, passando
por sinos, sons ocos, raspagens e ritmos pedonais, tudo se amalgama.
Marthe Lea, saxofonista norueguesa, retoma o trilho
desbravado por Albert Ayler, transfigurando-o ao integrar elementos de diversas
tradições musicais e abordagens oriundas da improvisação livre europeia. Além
do saxofone tenor, desdobra-se em flauta, piano, guitarra, voz e percussões,
multiplicando as possibilidades tímbricas e conferindo riqueza sonora ao álbum.
"Topos" parece retomar as formas musicais
primordiais da Grécia antiga. A flauta desenha um canto pastoril, enquanto
contrabaixo e bateria traçam um ritmo independente, sustentando uma progressão
constante e envolvente. É esta soma de idiossincrasias que torna
"Utos" um objeto fascinante.
Marthe tem um timbre forte, entusiástico, quase “gritado”,
criando uma sonoridade visceral. Distingue-se pela abordagem aberta e exploratória
que permeia o jazz do norte da Europa – uma expressão de liberdade e tolerância
que se enraíza profundamente na tradição cultural europeia, mais generosa e
empática que a de outras geografias. Em 2021, editou "Bayou" pela ECM
e, já no final do último ano, deu-nos este "Utos" pela Clean Feed.
Ambos com trios, formações depuradas onde o saxofone se apoia em estruturas
simples, quase orgânicas, que evoca a espiritualidade dos cantos religiosos e das
work songs afro-americanas.
O contrabaixista Jon Rune Strøm tem vindo a editar
regularmente na Clean Feed, participando em projetos como Friends &
Neighbors, Universal Indian e All Included. O baterista Dag Erik Knedal
Andersen é reconhecido pela sua presença em grupos como Cortex e The Heat
Death, todos com lançamentos no mesmo selo. "For Pedro",
antepenúltima faixa do álbum, soa a homenagem ao trabalho incansável de Pedro
Costa na divulgação do jazz europeu.
O disco encerra em apoteose, como começou: uma interpretação
apaixonada de "Song For Che" de Charlie Haden, atravessada por
percussões espontâneas que remetem para o universo do Art Ensemble of Chicago.
O contrabaixo usa poucas notas, como se a melodia estivesse a ser descoberta em
tempo real, num deslumbramento diante das múltiplas variações que oferece. A
peça, reduzida para um trio, mantém intacta a alegria da composição e da
interação coletiva do original.
"Utos" é "Foz": o ponto onde o rio se
dissolve na vastidão do mar numa alusão à ideia de uma música natural largada
no universo.
Faixas:
1.Furore
05:16
2.Namsen
02:39
3.Eldars
Pols 05:19
4.Sulida
01:21
5.Topos 04:19
6.Lågen 07:12
7.For Pedro 01:05
8.Utos 12:19
9.Song for Che 06:07
Músicos: Marthe Lea— Saxofone tenor, Flauta, Percussão; Jon
Rune Strøm— Contrabaixo; Dag Erik Knedal Andersen— Bateria, Percussão.
Fonte: Gonçalo Falcão (jazz,pt)

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