Há momentos – e instrumentos – que tudo mudam. Se o trio
saxofone-contrabaixo-bateria é uma instituição na história do jazz, terreno
fértil para explorações e liberdades, pode surgir uma faísca que espoleta um
processo de alargamento do espetro de possibilidades sônicas e de elevação da
música a um outro patamar. A entrada em cena do piano faz com que “La Grande
Crue”, quarto álbum do trio The Attic, seja necessariamente um álbum muito
diferente dos registos anteriores, trazendo toda uma nova dimensão à música da
formação, em termos harmônicos e melódicos. Eve Risser, pianista francesa e
figura absolutamente essencial das músicas criativas do nosso tempo, é senhora
de um léxico riquíssimo e de uma versatilidade consequente em qualquer contexto
– do solo à orquestra, passando pelo trio e pelo quarteto. «O simples fato de
incluir um piano nas equações da improvisação altera por completo o tipo de
energia libertado pela música, para nós e para quem ouve», começa por dizer o
saxofonista Rodrigo Amado à jazz.pt. O que era exatamente o objetivo. «Entramos
em estúdio sem qualquer conversa sobre aquilo que iríamos fazer. A comunicação
musical, tal como imaginávamos, foi imediata. E a música da Eve funcionou como
uma verdadeira “inundação” da música do trio», salienta. E nada mais seria
igual, a ponto de espantar o próprio saxofonista pelo modo como, a partir de
então, passou a construir o seu próprio discurso. «Fiquei bastante surpreendido
com a minha linguagem, com uma certa sofisticação harmônica que ainda não tinha
identificado no meu fraseado». Este álbum é também aquele em que o grupo atinge
um nível de maturidade muito particular: «Sinto este trabalho como o nosso
ponto de maturidade, no sentido de que atingimos uma determinada coerência e
estabilidade criativa e agora podemos experimentar ainda mais, musicalmente e
na organização de formações alternativas», assume. No trio The Attic ao
saxofonista – nome inescapável do jazz mais estimulante que se faz em Portugal e
o músico nacional a movimentar-se nestes domínios hoje mais reconhecido lá
fora, em movimento permanente – juntam-se Gonçalo Almeida – contrabaixista e
estrategista sonoro radicado nos Países Baixos, dividindo-se em projetos como
Albatre, The Selva, Ritual Habitual, Spinifex ou Lama – e o baterista
neerlandês Onno Govaert – também com outras fortes ligações à cena nacional:
Hugo Costa, Luís Vicente, Marcelo dos Reis. À estreia homônima, ainda com Marco
Franco na bateria, em 2017, registro auroral, mas nem por isso menos
interessante ou consistente, seguiram-se “Summer Bummer”, de 2019, já com a
formação atual num registro ao vivo no festival com o mesmo nome, realizado na
cidade belga de Antuérpia, e “Love Ghosts”, gravado em janeiro de 2020, mesmo
antes de a pandemia virar o nosso mundo do avesso.
Depois de dois discos magníficos – a estreia, em 2023, do
quarteto The Bridge – com Alexander Von Schlippenbach, Ingebrigt Håker Flaten e
Gerry Hemingway – em “Beyond the Margins” (resenha publicada
no blog Sojazz em 11/01/2024), já em 2024, “The Invisible” – ao lado de Dirk Serries e
Andrew Lisle –“La Grande Crue”, gravado por André Fernandes nos estúdios
Timbuktu no final de julho de 2023 e misturado por Joaquim Monte e pelo próprio
Amado, inclui quatro improvisações com duração compreendida entre os 10 e 21
minutos, assinadas pelo quarteto. Importa, desde logo, determo-nos na
maravilhosa pintura de Manuel Amado – pai do saxofonista e nome grande das
artes plásticas portuguesas do século XX – integrada em “A Grande Cheia”, série
de 13 quadros pintados em 1996, que foram mostrados em exposição pela primeira
vez no Centro Cultural Calouste Gulbenkian de Paris, em 2001. Nesse mesmo ano,
o poeta Nuno Júdice escreveu um livro de poemas em diálogo com esta série, com
o título “Jogo de Reflexos”, publicado em edição bilingue pelas Éditions
Chadeigne (Paris, 2001). Um desses textos, “Ângulo”, é reproduzido no encarte
de “La Grande Crue”: «Um reflexo de luz morre nas águas estivais. As algas
proliferam na sua textura, bebendo o último brilho da janela. O quarto fecha-me
numa arquitetura branca. Respiro um ritmo de lençóis afogados. Uma voz interior
enuncia métricas ovais, que repito na corrente monótona do verso. Esta luz,
porém, tem a ossatura da melancolia.» A colaboração com a pianista – alguém que
há muito já estava no radar do trio – introduziu, já se vincou, uma panóplia de
novas soluções para o som da formação, guindando-a a um nível diferente. «A Eve
é uma pianista extraordinária», sublinha Rodrigo Amado, destacando o disco em
trio que a pianista gravou com o contrabaixista Benjamin Duboc e o baterista
Edward Perraud, “En Corps – Generation”, de 2017, tal como o disco da Red
Desert Orchestra, “Eurythmia”, editado pela portuguesa Clean Feed em 2022. «Ela
consegue, como ninguém, incorporar células totalmente abstratas, puramente sônicas,
num discurso improvisado mais convencional, mas nem por isso menos
interessante», explica o saxofonista. Quando tiveram notícia de que Eve Risser
vinha tocar ao Jazz em Agosto, na Fundação Calouste Gulbenkian, a ideia de
efetivar uma colaboração começou imediatamente a tomar forma. «O Gonçalo já a
conhecia relativamente bem e a Eve aceitou de imediato.» O modus operandi
criativo foi o habitual para o trio, leia-se a total improvisação. «Entramos
todos num estado de imersão total, concentração máxima», diz Amado, que surge
aqui em estado de graça, ao mesmo tempo poderoso e sensível, baralhando e
voltando a dar, sem jamais se impor, sempre na senda de descobrir mais de si
próprio e das relações com os músicos que judiciosamente escolhe para os seus
grupos. Gonçalo Almeida e Onno Govaert são músicos enormes que permanentemente
aditam ideias, propostas de caminhos a seguir, em jogos criativos de uma
interação orgânica e sem rede, nutrida por longeva cumplicidade.
Na peça inicial, “Corps”, os primeiros sons que se escutam
são os do contrabaixo de Almeida que com o recurso ao arco confere, desde logo,
uma atmosfera solene; junta-se-lhe a bateria hiperdelicada, Risser explora as
entranhas do seu instrumento e Amado sopra com limpidez e um notável sentido de
espaço. A peça desenvolve-se num paulatino crescendo de intensidade, com os
quatro músicos a tricotarem as suas linhas. Há uma secção em que o trio
saxofone-contrabaixo-bateria expõe a uma interação telepática; a dado instante,
o piano adquire uma centralidade nevrálgica, com notas muito físicas, e os
níveis de intensidade sobem consideravelmente. O saxofonista responde com jatos
sonoros octanados, que de modo progressivo vão permitindo que o silêncio se
imiscua, conduzindo a um final apaziguado. “Peau” traz uma ambiência de certa
forma mais jazzística, em grande medida propulsionada pela forma como Amado
conduz as operações, de modo respirado e interativo, proagindo e reagindo; o
piano aporta acordes esparsos, mas decisivos, a dupla rítmica não cessa de
surpreender pela forma como desenvolve a sua intrincada relojoaria. Risser
volta a ganhar espaço e a puxar para a linha da frente o seu pianismo anguloso.
Rodrigo Amado retoma o discurso com frases curtas, que a pianista contrasta com
notas cristalinas. O final faz-se num tom lamentoso e inquietante. “Phrase”
começa por ser tour-de-force para Risser explorar o instrumento a fundo;
entram cena os demais instrumentos – ótimo solo de Govaert – e os voltímetros
acercam-se do vermelho. O saxofonista traz então uma linha melódica a que o
piano responde com sensibilidade. A peça ganha contornos de certa forma mais
camerísticos, com os quatro instrumentos a entregarem-se a jogos multilaterais
de contenção, respeitando os espaços, mas não deixando de se interpelar
mutuamente. Contrabaixo e bateria voltam a demonstrar que formam um tandem (Nota:
bicicleta com dois ou mais assentos) apertadíssimo. Amado discursa com foco
e precisão, jogando habilmente com os níveis de intensidade. O quarteto
efervesce, em diferentes geometrias, até ao clímax. A fechar, “Pierre” tem um
início noturno e misterioso (quem será o Pierre?). O saxofonista sussurra,
convocando sons diversos, Almeida volta a recorrer ao arco com efeitos
surpreendentes e Govaert toca com espantosa sensibilidade. Risser explora
diferentes técnicas, aportando toda uma paleta de elementos harmônicos que
estabelecem diferentes níveis de articulação com os demais instrumentos. O
saxofonista flameja e sai de cena, deixando o trio piano-contrabaixo-bateria a
ferver; ao reentrar, discursa com uma altivez sóbria, esticando ao limite os
níveis energéticos, antes de tudo se esvair em silêncio.
“La Grande Crue” tem o raro condão de nos interpelar
verdadeiramente, de mexer com o nosso entendimento do que a música deve ser, de
mudar a forma como nos relacionamos com o outro lado, o lado da criação do que
escutamos. Fazendo de nós, deste lado, parte ativa do processo criativo. E de
assim, inundados pela beleza, nos reconciliarmos com o mundo.
Faixas
1.Corps 15:02
2.Peau 10:44
3.Phrase 20:38
4.Pierre 16:57
Músicos: Rodrigo Amado – saxofone tenor; Gonçalo Almeida – baixo; Onno Govaert – bateria; Eve Risser – piano.
Fonte: António Branco (jazz.pt)

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